Capa da Revista indisciplinar, v. 7, nº 1. Foto de Clédisson Jr
The Enchanted Sciences: Photoethnographic essay in a Jurema Sagrada yard.
Por Clédisson Júnior*
Este ensaio fotoetnografico (ACHUTTI,
1997) foi realizado em Olinda, cidade da região
metropolitana do Recife (PE). As imagens obtidas durante este ritual na Casa das
Matas do Reis Malunguinho
constituíram-se em um exercício de escrita narrativa conduzida pela análise das
imagens produzidas em um contexto de pesquisa de mestrado.
Espaços de reinvenção do
viver foram captados por meio destas imagens e contribuíram para a transmissão desse
universo, de intensa sensibilidade e abertura
para a relação
com o outro. Olhares que revelam dinâmicas próprias, as imagens
permitiram, ao longo desta pesquisa etnográfica, estabelecer relações,
evidenciando a experiência da diferença, assim como uma tentativa de revelar um
ambiente muito particular de um terreiro da Jurema Sagrada.
Terreiros são estes espaços
onde se celebram as festas dos orixás, das entidades espirituais e encantadas.
É o espaço onde acontece todo princípio dinâmico, portanto complexo, onde os rituais
se realizam e as relações se
intensificam entre os praticantes das religiões afro
brasileiras. É no terreiro que os “filhos de santo” dançam ao som dos atabaques
e seus corpos entram em transe. Mais ainda, o terreiro como espaço dinâmico é o
cenário sagrado em que se celebram a vida, os deuses contam suas estórias
através da dança e do gesto. Como um espaço cênico, o terreiro é o espaço do
movimento, do devir e da complexidade.
As invenções dos terreiros na
diáspora evidenciam a complexidade dos modos de vida aqui reconfigurados. As diferentes
configurações de terreiros nos mostram que eles podem refletir desde uma busca
por ressignificação da vida a partir de um referencial do que seria esta vida
no continente africano antes da invasão europeia, assim como também aponta para
disputas e alianças travadas na elaboração
de novas práticas e
sociabilidades entre os indivíduos que se organizam neste território.
O que a noção de
terreiro abrange é
a possibilidade de se
constituir enquanto territórios
existenciais (GUATTARI, 1992), na
ausência de um
espaço físico permanente
abrindo assim possibilidades para
pensar essa noção a partir do rito.
O culto da Jurema Sagrada é
compreendido como uma tradição de conhecimento que procede da articulação
de diferentes fluxos culturais,
resultante de uma
práxis ritualística cujos sujeitos operam
com criatividade e
fluidez.
A Jurema é uma ciência, que é operado pelos seus técnicos, mulheres e homens de notório saber dentro do culto que a aplica em curas físicas e espirituais, dentro do que os juremeiros chamam de “trabalho de ciência”. Na Jurema a produção epistemológica adotada contraria o projeto político da modernidade, é um perspectivismo que se referência nas encruzilhadas, que reivindica uma entre tantas formas de conhecimento praticado no mundo. Esta produção do conhecimento aponta para um exercício complexo sobre a urgência de um debate político e ontológico no campo das existências.
Ao se afirmar a
emergência de uma
“ciência encantada”, referenciada na
tradição indígena e
africana e aqui (re)territorializada no
espaço das encruzilhadas
busca-se reforçar o argumento da pluriversalização do conhecimento,
das diferentes formas
de experienciar nossas
existências no mundo. Enfatizar
uma dimensão alternativa na produção epistemológica, contudo não se traduz em
produzir uma negação da racionalidade moderna ocidental, propondo deste modo
uma via subalterna. A encruzilhada enquanto referencial geofilosofico visa
assumir a dimensão polirracional, pluriversal e plurilinguísta do mundo.
Um terreiro da Jurema
Sagrada enquanto espaço de produção de
vida de grupos
minoritários, se torna
um instrumento de desconstrução dos
discursos e das
práticas violentas da modernidade, contribuindo
com releituras sobre
o processo de formação
sócio-territorial da América
Latina rompendo com um paradigma
marcado pelas categorias impostas desde a
racionalidade moderna e
chamando para si
uma atenção especial acerca
dessas outras racionalidades apagadas
pela história, pelos processos de dominação colonial, pela expansão
homogeneizante de um capitalismo racista (QUIJANO, 2005).
Para a Jurema Sagrada e seus praticantes, o território, no mesmo sentido que a tradição, não é um elemento estático e imutável, ambos sofrem de um reordenamento diante dos desafios da contemporaneidade. Isto é, o território é a medida de uma identidade não essencial, mas que está marcado pelo convívio com conflitos permanentes. Conflitos cosmopolíticos (ANJOS, 2006). Os juremeiros instauram o devir como o regime político do religioso por meio de um processo antropofágico em busca da complementariedade. É essa ontologia que permite a permanência de uma religião indígena (somada a referenciais cosmológicos africanos e um catolicismo popular) desde a invasão dos europeus nas Américas no interminável século XV.
Referências
ACHUTTI, L. E. R. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. 1a ed. Porto Alegre, RS : Livraria Palmarinca : Tomo Editorial, 1997.
ANJOS, José Carlos dos. No território da Linha Cruzada: a cosmopolítica afrobrasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Fundação Cultural Palmares, 2006.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo, Editora 34, 1992.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder,
eurocentrismo e América
Latina. In: Lander,
Edgardo (org.) A
colonialidade do saber: eurocentrismo
e ciências sociais. 2005.
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Publico aqui texto integral e fotografias da publicação na revista Indisciplinar, v. 7, nº 1 de dezembro de 2021, de autoria de Clédisson Jr, doutorando em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, que há alguns anos pesquisa na Casa das Matas do Reis Malunguinho. Em suas imersões, deu luz a dissertação de mestrado com o titulo: TERRITÓRIO ENCANTADO: o devir-quilombola e a cosmopolítica afro indígena brasileira (2019), que teve como principal campo a Casa das Matas do Reis Malunguinho e seu cotidiano, rituais e lutas políticas. Como pesquisador muito competente, Clédisson tornou-se nosso amigo sendo admirado por todos nós pelos seus textos, fotografias e ações.
Link para acessar a revista e demais artigos: https://periodicos.ufmg.br/index.php/indisciplinar/issue/view/1789
Sempre lutamos para que a Jurema Sagrada fosse melhor vista no cenário nacional das religiões, luta com total êxito realizada pelo Quilombo Cultural Malunguinho ao longo dos últimos 20 anos, tirando essa tradição do ostracismo histórico e acadêmico. Essa publicação é mais um exemplo do quanto essa missão vem sendo bem cumprida. A Casa das Matas, terreiro de Jurema em Olinda já tem em sua histórias algumas teses e dissertações de mestrado, além de artigos, publicações e documentários. Assim seguimos com a força do Reis das Matas!!
Alexandre L'Omi L'Odò
Quilombo Cultural Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com