Primeira Missa no Brasil - Pintura de Victor Meirelles (1861). Fonte: Internet.
Índios
e Caboclos na Jurema Sagrada
Não em nome do “nosso Senhor Jesus Cristo”!
Hoje
acordei com um pensamento que há alguns anos vêm me perturbando... Decidi
problematizar um aspecto religioso interno da Jurema Sagrada que muito me
incomoda e faz refletir. Irei tratar aqui exclusivamente da realidade da Jurema
por conceber não ser pertinente a mim falar de umbanda e demais religiões de
terreiro neste momento. Contudo, é constatável que em outras práticas como no
Nagô, no Jeje, no Ketu etc. ainda as questões aqui discutidas, estão fortemente
presentes e vigentes.
O
aspecto ao qual me refiro é um dos mais comuns da nossa prática religiosa. É o
da “chegada” dos índios(as) e caboclos(as) nas reuniões de mesa ou em festas de
salão, cujo ao qual falam antes de qualquer ato: “salve nosso Senhor Jesus Cristo” e todos presentes respondem: “para SEMPRE seja louvado”. Não só os
índios e caboclos se expressam dessa forma, também os mestres e mestras e
outras entidades e divindades... Mas foco aqui neste texto as entidades e
divindades indígenas, porque eles e elas foram os primeiros a sofrerem o
massacre do catequismo cristão, que resultou nesta permanência e louvor aos
valores do opressor em nossa fé religiosa.
Não
só as entidades e divindades repetem estes predicados cristãos. Os juremeiros e
juremeiras também repetem, fazem o sinal da cruz, rezam o Pai Nosso e
reproduzem outros elementos simbólicos dos colonizadores. Muitos, mesmo tendo
acesso há um pouco mais de informação, se mantém fechados a repensar estas
questões teológicas nossas...
Este
não é um texto que tem como missão determinar nada para ninguém. Não é um texto
que se encerra em si, e muito menos que quer violentar e desrespeitar ou expor
ninguém. Sou um sacerdote que respeita todas as fés e todas as formas de
interpretar o sagrado e divino, porém, isso não me impede de refletir
criticamente sobre os diversos elementos que envolvem questões culturais,
sociais e teológicas nossas.
Altar dos índios e caboclos na Jurema. Foto de Marcelo Curia. MDS - UNESCO. Mapeamento dos Terreiros 2010 - Recife/PE.
Os
índios foram catequizados. Sabe o que significa isso? Significa que tiveram sua
cosmovisão de mundo delida por outra de valores completamente diferentes e
violentos... Tiveram suas famílias violentadas, estupradas, corrompidas, suas
crenças destruídas, suas línguas desaparecidas, sua cultura morta e sua fé e
práticas litúrgicas próprias para sempre apagadas. Tantas cosias que jamais
saberemos que existiram um dia, pois não houve tempo sequer de haver um
registro escrito sobre divindades e entidades que povoavam estes povos
indígenas em séculos passados... Isso tudo é profundamente terrível e
infelizmente faz parte de nossa história. O holocausto indígena, financiado e
proporcionado pela Igreja Católica e outros parceiros políticos, deixaram
marcas, feridas históricas e sociais que jamais poderão ser esquecidas ou
relevadas por todos nós. Não podemos ser cúmplices, omitindo os fatos.
Isso
tudo é muito doloroso. E mais doloroso ainda é ver o quanto o massacre dos
povos indígenas foi cruel e mesmo assim a passividade que foi introduzida na
alma dos ancestrais, fazendo-os repetir os símbolos cristãos por medo e risco
de morte, se mantiveram e até hoje são repetidas com apego profundo por todos
nós. Por isso, creio que este é um ponto que devemos rever, mesmo que doa e
fira àquilo que toda vida aprendemos de nossos padrinhos e madrinhas mais
antigos na religião.
Vamos
compreender mais: Mantemos vivos cotidianamente os valores do opressor. O
colonizador que nos violentou, usou das mais diversas metodologias para nos
convencer de que somos todos submissos a eles, e isso é muito sério e
verdadeiro. Tão sério que nem percebemos o quanto somos manipulados
cotidianamente por este plano de dominação que deu parcialmente certo em
co-parceria com todos nós. Também somos culpados de nossa submissão! Somos tão
culpados que insistimos em manter “valores alienígenas” em nossas práticas
religiosas.
Não
é de purismo religioso ou tradicional/cultural que falo. Afinal, não existe
religião pura, ou cultura pura. Todos nós bebemos das fontes de diversas fontes
que a trajetória histórica do homem/mulher deixou para a posteridade. Falo aqui
que devemos enxergar que determinados elementos devem ser mudados, ou melhor,
entendidos. Que devemos buscar os elementos mais próximos de nossas raízes
ancestrais e tentar reconstruir (se possível ainda) uma identidade da Jurema
mais ligada a valores de sua história indígena (mesmo grande parte dos
terreiros hoje serem e estarem no mundo urbano).
Catolicismo
popular, fés imbricadas, re-elaborações ritualísticas, sincretismos, hibridismo
etc. tudo isso é pouco para acharmos que é assim mesmo que se devem manter as
coisas como estão. Nada disso explica, justifica ou dá conta de nossa demanda
histórica de resgate do que foi perdido. Nenhum desses argumentos científicos
citados servem de fato para esta discussão, mesmo estes elementos sendo
considerados como parâmetros que devemos também considerar. Por outro lado, o
que foi perdido talvez não possa ser mais recuperado... Mas o que der pra
recuperar, podemos fazer um esforço redobrado para resgatar, ou mesmo
re-interpretar. E ainda repito, o que proponho aqui não é que todos nós saiamos
agora de nossas casas e partamos em busca desesperada de valores indígenas
originais etc. Ou que abandonemos nossas práticas tradicionais... Tudo que
neste breve artigo escrevo é focado na proposta de uma provocação que espero
que sirva para refletirmos amplamente e sem preconceito sobre este tema.
Quando
vejo em uma mesa de Jurema um índio(a) ou caboclo(a) “baixar” e repetir o
tradicional “salve nosso senhor Jesus Cristo”, inevitavelmente em meu coração
se dissemina uma tristeza profunda. Também inevitavelmente meu tino racional me
coloca a pensar no nosso passado e ver que é triste ainda hoje entidades tão
sábias e antigas manterem traços da repressão violenta católica jesuíta. Sei
que este “dizer” é muito pequeno perante a força das espiritualidades ali
presentes. E que esta minha crítica pode não fazer sentido nenhum para as
entidades tão antigas e juremeiros e juremeiras velhos de idade e de Jurema...
Mas vejo que temos amor, e valorizamos os símbolos que nos violentaram e
mataram (creio que ainda continuam matando e violentando simbolicamente e
socialmente). E isso me revolta. Me dá uma inquietação profunda... E ao mesmo
tempo me acalmo quando vejo que para além dos planos de dominação da Igreja,
tudo que ela quis fazer não conseguiu por completo, pois se ainda existimos
como juremeiros, é porque não venceram completamente e nem concluíram seu pano
de dominação/colonização de almas e território geográfico.
Na
visão geral interna da Jurema, um índio ou caboclo quando “baixa” e repete o
“salve nosso Senhor Jesus Cristo”, significa que ele foi doutrinado. Pois, nos
processos de “evolução” dentro das mesas brancas de jurema (e lembro que esta
palavra branca tem vários significados onde um deles é embranquecer as práticas
ancestrais indígenas e africanas), os índios que “chegam” falando Tupi, ou
outras línguas indígenas, devem saudar o “Senhor Jesus Cristo”, pra mostrar que
ele é bom e está regenerado de sua condição selvagem. Portanto, as mesas de
evolução ou desenvolvimento, como são chamadas, também são uma reprodução do
catequismo católico jesuíta. Por vezes as mesas de desenvolvimento, mais
parecem mesas de catecismo, do que, de Jurema. Daí percebemos mais uma vez que
nossas práticas ainda reproduzem e perpetuam os valores do opressor colonizador
cristão... Isso considero uma violência simbólica muito estruturante dentro de
nossas liturgias. Por tanto, pergunto, será que “evolução” só pode ser
considerada como algo dentro dos padrões cristãos? Pra mim evolução (não gosto
desta palavra, pois pra mim não existe evolução) é o índio ou o caboclo
“baixar” falando Tupi ou qualquer outra língua indígena existente nas Américas,
livre dos signos ocidentais que os violentaram e mataram. Seria uma retomada do
território simbólico/linguístico que perdemos em séculos passados.
Altar de Jurema demonstrando a presença do catolicismo popular convivendo com a tradição indígena. Foto de Marcelo Curia. MDS - UNESCO. Mapeamento dos Terreiros 2010. Recife/PE.
Por
mais que a saudação seja re-significada, ou que seja apenas uma frase repetida
sem muito aprofundamento teológico por parte dos juremeiros (aparentemente), ou
que seja algo mecânico e sem uma reflexão profunda do que se fala, contudo,
mesmo assim ainda compreendo que não devemos repetir inconscientemente estes
elementos. Temos Tupã, Mãe Tamain, e tantos outros deuses e deusas da tradição
indígena que podemos conhecer, por que nos mantermos louvando para SEMPRE Jesus
Cristo, perpetuando a memória da fé cristã?
Será
mesmo que estamos agindo de forma benéfica para com nossa memória ancestral?
Será que nos mantermos passivos e conformados a este processo de (ao meu ver)
de vilipêndio é algo saudável para nosso futuro religioso? Penso que devemos
reagir. Sei que a prática do desapego é algo muito difícil. E sei que romper
com valores historicamente estabelecidos é mais difícil ainda. Mas temos o
tempo a nosso favor... Ele pode dar conta de nos ajudar a perceber e resolver
nossas questões mal discutidas internamente. Temos um futuro, e este, deve ser
muito melhor do que é hoje para nossos ascendentes, com mais liberdade humana e
crítica com acesso a história.
Toda
reza é bem vinda. Toda fé merece ser respeitada. A força da Jurema “também”
está nas rezas cristãs, nos santos católicos, na hóstia etc. Mas o “TAMBÉM”
aqui exposto nos dá a possibilidade de entender que isso é apenas uma parte do
todo, e que o todo em seu pilar fundamental tem outros elementos mais fortes do
imaginário indígena. Estes elementos nos ajudam a perceber o conflito por espaço
de ambos os cosmos dentro da Jurema, portanto, é bom TAMBÉM enxergarmos de fora
um pouco para percebermos o quanto ainda lutam por espaço os elementos
simbólicos religiosos de ambas as tradições. Este conflito por espaço é
importante, pois revela a ininterrupta transformação dos símbolos e
sincretismos. “As religiões e as tradições não são estáticas”.
Gostaria
muito de ver um dia em uma mesa de jurema “baixar” caboclos e caboclas, índios
e índias, pajés, caciques, caboclinhos e outros encantos de luz falando em
língua original e saudando seus deuses próprios, seria revolucionário... Também
aprenderíamos muito mais com isso. Pois, estaríamos forçados a re-aprender a
falar estas línguas para nos comunicarmos melhor com os ancestrais.
Só
penso na filosofia Adinkra, cujo o símbolo Sankofa serve para interpretar ou dar
caminho a este dilema. Sankofa é aprender com o passado para construir o
futuro, em uma tradução livre minha. E acredito nisso profundamente.
Que
estas provocações sejam entendidas pela comunidade do Povo da Jurema. E que
possamos construir novos horizontes de discussão, com respeito e sabedoria. Ainda
digo que este é um tema que pode dar margem a uma pesquisa de mestrado ou
doutorado no campo das ciências da religião, antropologia, história ou
sociologia. Busquem pesquisar mais sobre nossa religião, precisamos olhar pra
nós mesmos!
Talvez
eu fale todas estas coisas por ser um jovem juremeiro (em meu tempo e em meu
lugar) e ter tido acesso, e ter buscado outras informações que me deram
condições de refletir desta forma sobre nossas questões internas. E que a
frieza racional que algumas vezes sobressai em minha escrita seja fruto de um
processo de “academificação” que eu mesmo decidi aderir... Mas falo aqui como
religioso, como sacerdote que deseja que sua comunidade se fortaleça e
estabeleça uma prática permanente crítica sobre todas as cosias. Sei que
tradição é tradição, e que conceitos não se mudam facilmente. Respeito tudo
isso. E gostaria que este texto fosse lido por todos os juremeiros, para que as
demais críticas ao mesmo e ao tema fossem registradas para completar a missão
deste escrito.
Lembro
que este “artiguete” provocativo não diz respeito a nenhuma outra religião e
que deve interessar diretamente aos juremeiros. Isso aqui é uma discussão
teológica interna, que publico na internet por este ser o único veículo de
comunicação hoje capaz de fazer estas linhas chegarem a uma parte dos
sacerdotes e adeptos que usam redes sociais e outros meios on line.
Salve
a fumaça!!!
Sobô
Nirê!
Alexandre
L’Omi L’Odò
Quilombo
Cultural Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com