São Jorge, arte de 1378 do Livro de Horas. Primeira imagem registrada em livro.
Procissão de São Jorge/Ògún – 44 anos de tradição e
resistência em Recife.
No
dia 23 de abril de 2011, fui pela primeira vez à Procissão de São Jorge (Ògún),
do terreiro de Umbanda, Jurema e Nagô Pai Francisco, do afamado e sério Pai
Messias de Ògún, o conhecido Pai Messias da Rua das Moças do bairro do Arruda,
no Recife, um sacerdote dos mais dignos e cheios de força que já conheci.
Pai Mecias de Ògún (Pai Mecias da Rua das Moças). Foto de Alexandre L'Omi L'Odò.
Após
ter me integrado a consciência que este ato de fé me trousse, pude refletir
sobre a importância real de fortalecermos as nossas grandes e tradicionais
manifestações religiosas. Ao invés de recriarmos atividades que em nada tem
haver com o espírito da tradição pernambucana de terreiro, devemos contribuir para
a salva-guarda e permanência desta tradição que é mais velha que centenas de
terreiros de Recife e Olinda, e que tem muito mais idade que muita gente
iniciada no candomblé ou Jurema em Pernambuco.
Andor, momentos antes de sair às ruas, dentro do terreiro.
Sua
procissão é uma verdadeira demonstração de força de agregação. Centenas de
pessoas, entre povo de terreiro e católicos, não religiosos etc. compunham a
grande caminhada. Com andor muito bem decorado com flores naturais, banda de
música (metais, caixa e bombo), cavalaria, ala de “baianas” (todas filhas do
terreiro), ala das bandeiras que simbolizavam cada uma um Orixá específico,
faixas com frases de reflexão, show pirotécnico e muita concentração na fé,
deram o tom da tradicional procissão que
seguiu seu percurso levando o cântico católico:
“São
Jorge é Santo, protetor meu,
Ele
é quem nos livra dos inimigos meus
Seu
capacete, em sua cabeça vive
Ele
é guerreiro, rei dos invisíveis”.
Ao
ouvido de todos que das casas e fachadas saiam para reverenciar o “santo” e ver
esta manifestação original que a cada ano leva mais gente às ruas.
Banda de música, com metais e percussão.
Ala das Baianas. Todas filhas do Terreiro.
Bandeira de São Jorge a frente da procissão.
O
que pude verificar foi que esta procissão é um ponto forte nos eventos de
agregação das religiões, onde o povo de terreiro independentemente de nação se
encontram pra celebrar juntos, à Ògún e a São Jorge. O longo percurso que
rodeia quase todo bairro do Arruda e Água Fria, se fez imperceptível, pois a
boa vibração das pessoas que com suas demonstrações de fé cantavam e louvavam,
não permitiram que caísse o entusiasmo que marcou todo o percurso.
Protagonizando
o entoar dos cânticos, estava lá o Pai Messias. Com sua presença forte de corpo
e espírito, dirigia tudo com determinação e voz altiva. Muito respeitado por
toda comunidade, ele com tranqüilidade deslumbrava nas ruas sua fé, com a
certeza de que a comuna jamais cometeria ou permitiria qualquer manifestação de
intolerância religiosa a ele, à procissão e a todas e todos que dela participavam.
Esta certeza que percebi me fez refletir o quanto é importante a relação do
terreiro com seu entorno, pois a Tenda de Umbanda Pai Francisco, é um
referencial altamente positivo em todo bairro e cidade. Tendo em vista a
prática financiada pelas igrejas neopetencostais de proporcionar o embate
contra as religiões de terreiro, esta desrespeitosa e não religiosa forma de
discutir alteridade foi completamente neutralizada há olhos nus pela força
sagrada do Mestre Mané da Pinga (dirigente absoluto da Jurema de seu terreiro) e
do próprio Ògún, Orixá de cabeça de Pai Messias, padroeiro da festa que como
sempre deram proteção e tranqüilidade absoluta a todo evento.
À
volta ao terreiro do andor e da procissão foi muito bonita e emocionante, o
auge de toda liturgia. Com um longo show pirotécnico, que deu ao céu o tom
verde e vermelho do Orixá (na nação nagô de Pernambuco), todas e todos os
presentes celebraram o fim da procissão, que com palmas receberam de volta ao
terreiro a imagem do “santo”. O que mais
me marcou foi a belíssima afirmação pública de que Ògún é São Jorge! Isso se
fez possível através da gira de umbanda feita em plena rua em frente ao terreiro
para finalizar a procissão. Ilús (instrumentos litúrgicos do terreiro), gan e
agbê deram o ritmo perfeito ao som do samba de angola e do ritmo congo às
toadas para Ògún na umbanda:
Ògún
não devia beber,
Ògún
não devia fumar,
Na
fumaça ele é seu Ventania,
E
na cerveja é espuma do mar”...
“Ògún,
vencedor de demandas,
Ele
vem de Aruanda,
Pra
saudar filhos de Umbanda,
Ògún,
Ògún Yara, (2X),
Salve
os campos de batalha,
Salve
a Sereia do Mar,
Ògún,
Ògún Yara,
Ògún,
Ògún Mejê”...
Com
muita animação e cenas interessantes como a de um militar vestido com a farda
do exército brasileiro tocando o ilú e baianas dançando as coreografias de Ògún,
tudo se finalizou com uma oração tradicional da Jurema de seu terreiro.
Militar fardado tocando Ilú.
Momento da oração tradicional da Tenda de Umbanda Pai Francisco.
Lanches
foram distribuídos a todos os presentes, vinho tinto, cachorro quente, arroz
com galinha de molho e refrigerantes. Ainda teve a apresentação do Maracatu
Nação Cambinda Estrela, do bairro de Chão de Estrelas, que fez a festa ao som
das alfaias, caixas e taróis, gonguês e mineiros, regidos pelo mestre Ivaldo
Marciano, que em seu discurso disse que todos os anos o Maracatu iria fazer
parte da procissão, levando os tambores para saudar Ògún e São Jorge.
Pai
Messias com seu carisma e sua espiritualidade leva a frente uma tradição que na
fala dele deixa claro: “Só quando eu for para o Orun (mundo espiritual dos
yorùbá, céu), deixarei de fazer. Mesmo assim meus filhos com minha ausência
darão continuidade a tudo que iniciei nessa vida”.
Mojubá
babá mi! Que me ensina e me dá coragem para prosseguir como filho de Osún
e Ògún. Kimbanda dos bons!!
Ògún e São Jorge, firmes e
fortes no cotidiano popular do Brasil
A
popularidade deste Santo/Orixá, a cada dia cresce em nosso meio. Vejo todos os
dias pelo menos umas dez pessoas no mínimo com colares que ostentam medalhões
com a figura de São Jorge. Todos expostos. Há quase que uma moda atualmente em
Recife, onde as lojas de “jóias” expõem em suas vitrines estes medalhões de
todos os tamanhos e espessuras, de diversos materiais como o aço escovado,
inox, latão, prata, ouro etc. de fato o Santo/Orixá está em alta. Mas observando um
pouco mais profundamente, podemos ver que o símbolo da proteção particular é
que está sendo o ponto principal desta disseminação da imagem do Santo
“guerreiro e protetor”, já que estamos a cada dia que se passa inseridos numa
sociedade violenta em todos os níveis, incitando a carência de elementos de
proteção para o corpo e espírito. Ainda percebo a questão da afirmação da
masculinidade que o símbolo de São Jorge traz aos homens. Este, exposto nos
peitorais dos pagodeiros em geral, serve ao que parece, para proferir
sensualidade, masculinidade e fé em um santo guerreiro e protetor. Sendo também
símbolo de estética mesmo, já que tanto a imagem em camisas e em bonés são
visualmente bonitas e representativas de uma ética e moral cristã (aceita pela
sociedade) dando respaldo ao usuário de forma simbólica.
Ògún. Bela pintura em tela fotografada da parede interna do Terreiro dos Palmares, templo Jeje do sacerdote Pai Srael de Avereketi. Palmares/PE. 2009.
Em
Recife, a única Igreja Católica que faz uma celebração a São Jorge é a Igreja
do Santíssimo Sacramento, do bairro de Santo Antonio, no centro da capital,
onde no dia 23 de abril, às 08h da manhã, celebra este santo, com a presença
quase que absoluta de iniciados e iniciadas nos cultos afro indígenas. “É uma
missa cheia de axé e do povo do axé e da Jurema”, como relata o historiador
João Monteiro, em conversa sobre o tema.
A
professora e escritora Georgina Silva dos Santos, autora da tese Ofício e
sangue – o papel da irmandade de São Jorge nas culturas de ofício da Lisboa
moderna, em 2002, pela Universidade de São Paulo, afirma que “São Jorge nunca
foi banido do rol dos santos católicos. Ao contrário, a história de sua devoção
é marcada por um incessante esforço eclesiástico para reconhecer-lhe a
santidade”. (SANTOS, 2002). Portanto, a lenda de que São Jorge não é santo da
Igreja católica, não é verdade. Essa crença no “Santo Guerreiro” é uma herança
legítima dos portugueses no Brasil. Honrado com uma igreja em Lisboa, por
Afonso Henriques, primeiro monarca português, São Jorge recebeu como herança o
cavalo de seu sucessor, Sancho I, e passou a ser evocado como grito de guerra
por Afonso IV. Devoção pessoal desses reis da dinastia de Borgonha (século XII
ao século XIV). Este Santo foi tido como intercessor celeste na batalha que
opôs Portugal e Castela, pela disputa da Coroa lusitana. Dando vitória a estes
reis e derrotando “o drago castelhano” o santo foi instituído como padroeiro do
reino e defensor de suas terras e gentes, ganhou notoriedade e deu ao paço
régio o nome de santo – o famoso Castelo de São Jorge de Lisboa. Estes atos de
D. João I inauguraram uma devoção dinástica. O santo ganhou mais ainda força
com tudo isso, se estabelecendo como símbolo de compromisso da fé católica. São
Jorge, com a expansão portuguesa em novas terras, inclusive no Novo Mundo e
África, entrou em contato com novos territórios, levado pelos viajantes e
navegadores, fiéis ao santo. O infante d. Henrique atribuiu a uma das ilhas dos
Açores o nome do mártir. Já D. João II, ao construir uma fortaleza na Costa da
Guiné, deu o nome de São Jorge da Mina, local de grande movimentação no período
do trafico negreiro para as Américas (século XVII ao XIX).
D. Afonso Henriques. Primeiro monarca português a honrar São Jorge com uma igreja em Lisboa.
A
tradição das procissões de fato foi a responsável pela popularização de São
Jorge. A introdução do santo na procissão do Corpo de Deus, ainda em 1387, manifestação
católica realizada em todo o Portugal, procissão em honra à Eucaristia, era a
festa mais importante da Igreja neste período histórico, colocando centenas de devotos nas ruas,
conseqüentemente ando visibilidade popular ao “guerreiro”, que muito
rapidamente constituiu crença entorno de seus milagres nas causas relativas a
lutas e proteção. Nessa procissão, a imagem de São Jorge era escoltada pelos
artesões que trabalhavam com ferro e fogo. Era um evento bastante interessante,
com danças de trabalhadoras das hortas e pomares que abriam a procissão ao som
das gaitas e das flautas. Por determinação municipal, as vias eram cobertas por
flores e ervas aromáticas, as pessoas colocavam nas fachadas de suas
residências veludos e damascos... Na procissão, vários santos vinham
acarreados. Cada um representando uma categoria de trabalhadores. Por fim,
vinha o bispo ostentando o Santíssimo, ladeado pelo rei e pelos oficiais
palacianos. São Jorge, atravessou o atlântico junto com a festa que o
popularizou entre os portugueses... Esta procissão dividia opiniões entre
cronistas e escritores da época. Uns elogiavam e diziam que esta manifestação
era um bom exemplo de união do profano com o religioso, outros diziam que era
ridícula. Várias foram as manifestações no Brasil que trataram o “santo
guerreiro” com especial atenção, sendo até criadas novas modalidades de
procissão para ele, diferenciando com o passar dos tempos com a tradicional
modalidade da procissão do Santíssimo. Georgina, ainda nos informa:
“Mas,
se São Jorge supria a demanda dos reis e dos exércitos, ajudando-lhes a forjar
uma estampa de glórias e conquistas, no meio do povo logo se tornou advogado de
causas cotidianas, com a ajuda dos orixás. Como enfrentara, num passado
longínquo, desafios semelhantes aos de Prometeu, Perseu e São Marcelo, São
Jorge também assumiria os de Ogum e os de Oxossi nos cultos afro-brasileiros”.
(SANTOS, 2002).
Imagem única de São Jorge com vestes romanas.
“São
Jorge é Ògún”! Essa afirmação é freqüente dentro dos templos de umbanda e
candomblé em toda parte do país. Um exemplo bastante interessante é a pintura
da parede do salão de festas da Tenda de Umbanda Pai Francisco, o terreiro de
Pai Messias. Lá na parede tem um São Jorge desenhado, que para todos os filhos
e filhas, e também para o sacerdote, “é Ògún que está ali, não o santo
católico”. Georgina também afirma que:
“O
processo cultural de identificação, associação e inversão que caracterizam o
sincretismo religioso entre São Jorge e os orixás da guerra e da caça
construiu-se sobre o caráter múltiplo das divindades africanas e as variantes
hagiográficas de São Jorge, um santo de “canonização literária””. (SANTOS,
2002).
Em
Porto Alegre,
Recife e Rio de Janeiro, São Jorge foi sincretisado com Ògún, na Bahia com
Santo Antônio. Os cultos de matrizes africanas e indígenas, reprimidos e
perseguidos pela Igreja e a polícia, encontraram no sincretismo religioso entre
os santos católicos e os Orixás uma inteligente e criativa solução para a
sobrevivência de suas divindades e religião. D. Obá II d’África, ex-combatente
da guerra do Paraguai, negro freqüentador da Quinta da Boa Vista, era um desses
que se dizia católico, mas não via e nem se comportava como se uma religião
fosse desligada da outra, mostrando que o sincretismo de fato imbricou-se
profundamente na forma de fé dos brasileiros, em especial dos negros e negras,
que são herdeiros da tradição desse sincretismo na maioria absoluta. Hoje, o
sincretismo não é mais tão forte e preciso. Mas, mesmo assim, São Jorge se
coloca entre um dos santos católicos de maior e mais profunda relação com
religiosa com o Orixá yorùbá Ògún. D. Obá II, ainda costumava afirmar
publicamente que: “no Brasil, São Jorge é Ogum!”.
No
Rio de Janeiro, desde 2001, o dia 23 de abril é feriado municipal. Nem mesmo a
reformulação do calendário litúrgico, promovida pela Igreja católica sob a
regência do papa Paulo VI em 1969, modificou a reputação e a força de São Jorge
entre os brasileiros. Presente no imaginário popular, o Santo encontrou
advogados devotos e poetas que fizeram e fazem de seu nome, honra e história
assunto e arte cotidiana. Mário Quintana, poeta e escritor perguntava-se: “que
culpa tem ele de ser tão belo e ecumênico?”.
Dedico
este artigo à Pai Messias da Rua das Moças, um sacerdote que me fez
entender que a fé é algo primordial para sermos integrantes plenos das religiões
de matrizes africanas e indígenas. Ele é Ògún/São Jorge também, por sua luta em manter viva uma tradição
tão popular no Recife.
Pai Mecias em meio a multidão da procissão de Ògún. Foto de Alexandre L'Omi L'Odò.
No dia 23 de Abril de 2012, a Procissão completará 44 anos de história. Mais um momento a ser celebrado e revitalizado por, e em todos nós.
Mojubá
aganganran ní mòun (meus respeitos e me curvo ao veloz enviado do céu) - Ògún
yé (Ogum é vida)! Sarava Ogum de Umbanda!
Salve a fumaça!
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Referências
SANTOS,
Georgina Silva dos. Ofício e sangue: a Irmandade de São Jorge e a
Inquisição na Lisboa moderna. Lisboa: Colibri; Portimão: Instituto de Cultura
Ibero-Atlântica, 2005.
Fontes
SANTOS,
Georgina Silva dos. Venerado guerreiro. Revista Nossa História, Ano 1 / n° 7,
maio de 2004. Páginas: 14 a
20. Biblioteca Nacional. 2004.
Entrevista
com Pai Messias, Eriméia de Paulina e João Monteiro.
*Todas as fotografias aqui postadas da Procissão de São Jorge são de autoria Alexandre L'Omi L'Odò em 23 de Abril de 2011.
Alexandre
L’Omi L’Odò
Iyawò
de Oxum e Juremeiro.