Tendo sido gravado entre outubro e dezembro de 2004, o documentário A Bahia do Afoxé Filhos de Gandhy, do diretor Lino de Almeida, comemora seus cinco (05) anos de existência.
Este documentário é um filme de negro para negros, com sentimento negro, e que não se resume apenas a esta inovadora linguagem afrodescendente e sim transcende as barreiras da comunicação audiovisual, sendo de fato uma soma, junto aos registros das culturas de resistência e tradição nacionais. Um registro da memória de uma forte expressão afro brasileira. O documentário a Bahia dos Filhos de Gandhi, do diretor Lino de Almeida, da produtora S12 Produções Brazil, compõe junto a grandes obras do audiovisual nacional, este filme/documentário é uma forte representação do imaginário e memória do povo negro da Bahia.
Com 82’73 minutos de imagens (produção) no total, e, 51’56 minutos de filme, o “cinespectador” poderá entrar no profundo âmago do maior afoxé brasileiro, o Gandhy, que chega a levar às ruas, no carnaval baiano, mais de 14.000 (quatorze mil) brincantes, desenhando aos olhos do Brasil uma gigante e emocionante “serpente branca” de alma negra, que traz uma mensagem única no meio da folia baiana, a paz mundial!
Criado em 1949 (anteriormente chamava-se Bloco Comendo Coentro) por um grupo de estivadores negros do porto de Salvador, na Bahia, os senhores Nélson Lobisom, Eduardinho, Almir Passos Filho, Das Virgens, Dominiense entre outros, após terem assistido no cinema o filme Guga Din, e coincidindo com o falecimento do Mahatma Gandhi, deram luz a um grande acontecimento. A criação do Gandhy é um evento importantíssimo na história do povo negro nacional, pois a partir daquele momento (1951 transformou-se em afoxé, por terem inserido cânticos sagrados dos terreiros em seus desfiles) fincou-se mais uma bandeira da voz do povo excluído no carnaval baiano. Hoje com 60 anos de existência é um eminente gigante que cresce sem parar, e aderem a ele todo ano, mais participantes.
Não se vê mais o “wisk importado, nem a farofa de bacalhau” (como lembra um dos fundadores, Nélson Lobisomem) que eram obtidos com facilidade nos tempos antigos do afoxé, mas sem dúvidas toda diversidade de pessoas que fazem parte da entidade levam à rua o seu melhor, a vontade de brincar o carnaval na paz.
Filme dedicado à Manuel de Almeida, sociólogo, filósofo, poeta e fundador do movimento negro (amigo pessoal de Lino de Almeida), o documentário tem imagens lindas que revelam um Salvador vivo e cheio de alegria. As belas imagens aéreas de paisagens, e dos desfiles dão o tom de magnitude ao que se propôs ser registrado neste doc. A direção de fotografia quem assina são o Rubens Araújo Santos, Roberto Guery e Luiz Vieira.
Abrindo com o ritual tradicional do Padê para Exú, simbolicamente o vídeo ganha um teor religioso e misterioso que já chama a atenção do “cinespectador”, que fica louco para ver o que vem depois da entrada que nos enche de curiosidade e emoção. Com um trilha sonora feito especialmente para o vídeo, os cânticos do Gandhy embalam todos os momentos e imagens. A fala do Rai Gandhy (Raimundo Queirós, falecido em 17.05.2006, aos 81 anos de idade), figura tradicional do afoxé que era símbolo importantíssimo nos desfiles e apresentações do grupo, revela parte da história de seu envolvimento com o afoxé, e também explicita a sua nova vida depois de ter assumido um lugar privilegiadíssimo como a própria figura do Gandhi na avenida.
Carlinhos Brown tem uma das falas mais emocionantes do filme, pois ele expressa sua fé quando fala que pegou “seu ferro” e foi tocar para seu pai, Ògún Xorokê, assumindo assim seu pertencimento a religião dos Orixás. Ele ainda afirma que foi Mãe Menininha do Gantois que permitiu e organizou os cânticos dos Orixás para que o bloco se firmasse enquanto afoxé e ainda dá aula quando fala que o agogô (instrumento típico do afoxé) deve ser tocado primeiro na parte inferior das câmpulas, começando por baixo para trazer mais axé e crescer todo mundo junto com o ritmo que marca toda caminhada pelas ladeiras.
As fotos do etnólogo, fotógrafo e babalawò Pierre Fatumbí Verger enriquecem ainda mais os OFF do documentário, pois os registros feitos por ele são lindos e tem toda característica do próprio. Ainda assinam as fotos do Gandhy os fotógrafos e fotografas Marisa Viana, Raimundo Bandeira, Antônio Olavo, Antônio Queiroz, e o Abimael Souza.
O cantor Gilberto Gil, que já foi presidente do Gandhy, coloca em suas falas toda a importância que o afoxé tem para ele, e foi também a partir dele que muitos artistas se associaram e deram maior visibilidade ao grupo, que teve várias músicas compostas em sua homenagem. O ex-ministro da Cultura é uma figura forte em todo filme, pois as falas dele delineiam parte importante dos depoimentos que fortalecem a história do Gandhy.
Imagens também de filmes como Tenda dos Milagres, de Nélson Pereira dos Santos, do filme Filhos de Gandhy (1999) do diretor Lula B. de Holanda, além de matérias de jornais antigos, mostram a pesquisa realizada pela equipe do documentário, que teve sucesso em reunir importantes registros que fazem uma linha do tempo da trajetória e história do bloco.
O recorte dado pelo diretor focando na intolerância religiosa e o racismo sofrido pelos negros e negras de terreiro, ou não, da década de
Uma coisa muito curiosa contida no documentário, e eu não saberia dizer se foi proposital. É a incidência dos cânticos para Iyemojá, sempre entoados por Mestre Zequinha. São lindos os cânticos... Que ainda encerram o vídeo com uma homenagem ao senhor Gervásio da Silva, o mesmo Mestre Zequinha que a todo tempo aparece cantando para a rainha do mar, nascido em 19.06.1929 e falecido em 07.11.2004, durante as gravações.
Deixo aqui um trechinho que traduzí, de um destes cânticos que aparecem no filme, para também homenagear Iyemojá:
Kíni jé l’odò – O que é feito nas águas do rio de Yemojá
A ko ta pele gbé – Ela dá a luz e o crescimento
Ìyá orò mi o – No ritual de minha mãe.
O registro de grande parte da produção fonográfica inspirada no Afoxé, criam um catálogo seleto, para os adoradores da poesia negra cantada, com músicas e poesias interpretadas e compostas por artistas como Clara Nunes, Jorge Aragão, Daniela Mercury (“Olha o Gandhy aí”) dentre outros artistas como Gilberto Gil que fez uma das músicas mais belas e marcantes letras homenageando o bloco, é ouvida no trilha, que reescrevo aqui para fazer um termômetro das informações do filme com a criação artística de um de seus ex-diretores:
Filhos de Gandhi
Gilberto Gil
Omolú, Ogum, Oxum, Oxumaré
Todo o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Iansã, Iemanjá, chama Xangô
Oxossi também
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Mercador, Cavaleiro de Bagdá
Oh, Filhos de Obá
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Oh, meu Deus do céu, na terra é carnaval
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi.
Destacam-se ainda as falas do representante da UNESCO no Brasil, o senhor Jorge Wertheim, que foca na “referência precisa feita à paz pelo Gandhy”, e diz ser este um elemento único em todo carnaval.
Contudo, ver-se também que o Gandhy oxigenou o movimento negro da Bahia, pois as falas dos ativistas negros Vovô do Ilê Aiyê e o João Jorge do Olodum, mostram claramente a contribuição afirmativa na vida deles, que foram influenciados pelo bloco, e que sempre saíram nele durante o carnaval também... Este registro oral é muito forte, por que revela uma face educativa e formativa do movimento negro provinda do Gandhy.
Um bônus valioso é a entrevista de 10’12 segundos com o dançarino Clyde Morgan, que revela características da dança negra no Brasil e decorre sobre a perca do traço elementar africano da dança em seu país o USA. Ele afirma que as religiões cristãs e muçulmanas, religiões tradicionais de sua família negam as tradições africanas negras e que essencialmente a dança dos negros foi perdida concretamente das tradições norte americanas, que por motivos de fortalecerem os elementos da palavra e da leitura nas religiões, cânticos também, foram deixando pra trás, um dos mais significativos elementos negros, a dança. A puxada de rede, gesto de dança muito forte no cortejo do afoxé, é um de seus elementos de pesquisa, e ele é filiado ao Gandhy e sai em seus cortejos também fortalecendo sua ligações com o candomblé.
Os links do cardápio do filme se dividem da seguinte forma:
Filme;Clyde Morgan;
Diretor;
Linha Histórica;
Mahatma;
Símbolos e instrumentos.
É muito rico cada link deste. A fala do direto Lino de Almeida, tem 7’52 segundos. Nela, ele expressa toda metodologia e histórico de como o filme foi pensado, roteirizado e realizado. Fala sobre sua satisfação em ter concretizado seu sonho, e, dá um enfoque muito forte em sua leitura sobre o tema, que ele classifica inteligentemente como “leitura gramsciniana”, termo este que pode significar algo como: “o ser que relata sua própria história”, dentro de uma perspectiva de autoconstrução e registro de sua historiografia, eliminando as pesquisas antropológicas e sociológicas que durante anos fundamentaram o pensamento branco acadêmico no nosso país. Só não concordo com a colocação bairrista que ele faz quando fala que Salvador é o “coração negro do Brasil”, porém sou pernambucano e não deixaria isso passar ileso (rsrsrsrsrs), porque acredito que ele poderia ter se fundamentado melhor na história antes de fazer um comentário tão tendencioso e de certa forma equivocado.
No linc Linha Histórica, o “cinespectador” que gostar de pesquisa e informação de qualidade pode encontrar um grande acervo de informações históricas do povo negro que ajudam a entender todo período histórico em que o Afoxé Filhos de Gandhy se desenvolveu até 2004. Recomendo àqueles que querem se apropriar de discussões sobre história mundial.
No linc Mahatma Gandhi, você poderá encontrar um release completo do maior líder indiano da história, e no link Símbolos e Instrumentos, você poderá encontrar toda explicação necessária para entender todo imaginário dos símbolos do Gandhy. Explicações sobre o simbolismo do Camelo, do Elefante, do Traje típico do afoxé, da Pomba branca, da Alfazema e do Padê entre outros, nos revela um afoxé fundamentado em conceitos profundos das tradições que funde (hinduísmo e candomblé).
Após ter tido a oportunidade de assistir pela primeira vez este filme em 2006 em Goiás, no Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, em um cinema montado pela PETROBRAS, vivenciei a experiência de entrar em um mundo de valorização de nossa tradição e especialmente na ternura do roteiro, que registra o Gandhy com leveza e pesquisa embasada.
Depois tive a sorte de ganhar lacradinho de presente, o filme, de Rita Honotório, ex-esposa de Lino de Almeida, falecido em julho de 2006, e que deixou para nós, povos negros e indígenas brasileiros e estrangeiros uma grande contribuição para o cinema contemporâneo, e nossa memória, pois é com pesar que sinto ele não está aqui hoje, para dar mais vida a sua obra.
É a Lino de Almeida que deixo minha homenagem com um Oríkì de Xangô, que era seu Orixá:
Lino de Almeida. Foto de Januário Garcia, do livro 25 anos 1980-2005, Movimento Negro no Brasil. Pag. 149.
Sàngó je igba orógbó lóojó – Sàngó come 200 orógbó por dia
Orógbó lóbì bàbà mi – Orógbó é o obì de meu pai
Obá alase lénu – O que tem o àsè da palavra na boca
Ó je àmàlà pèlú ilá – Ele come àmàlà com quiabo
Olóorè mi olósé àrà- Meu benfeitor, dono do àsè milagroso
Ató bá jayé mi o – Aquele que é o amparo da minha vida
Olòlò fi enu ìkà lolè – Que faz o perverso beijar o chão
Sàngó kò se gbé siré – Com Sàngó não se brinca.
Kawòó Kábíyèsi!
O filme/documentário A Bahia do Afoxé Filhos de Gandhy é um documento importante para contar a história do negro no Brasil, sem ele, jamais poderíamos enxergar com olhos acordados a verdadeira face de uma organização de sucesso de negros e negras da Bahia, em prol da paz e união entre os povos. O Branco é de Oxalá, o Azul marinho de Ogum... Os Orixás que defendem esta nação.
Que eu esteja sobre a terra para festejar os 10 anos deste filme.
Alexandre L’Omi L’Odò.
Em: 09/11/2009.
alexandrelomilodo@gmail.com