Foto da Matéria do Jornal do Commercio, 29 de Março de 2015, domingo. Caderno Especial JC Mais, páginas 6 e 7.
A semana é santa no
terreiro
RELIGIÃO
Fabiana Moraes
Durante a Quaresma, espaços de culto de matriz africana
suspendem suas cerimônias, uma prática tanto absorvida quanto questionada por filhos
de santo e seguidores.
As
opiniões são divergentes: há quem diga que é imposição da Igreja Católica, há
quem não veja base confiável para isso. Há quem tente manter a tradição, há
quem não a leve como extremamente necessária justamente por entendê-la como
fruto de imposição. Enquanto uns acreditam que é momento de guerra para os
Orixás, outros apontam para o contrário: é hora de retiro e descanso de forças
como Oxum, Ogum e Iemanjá. O ponto em comum que reúne tantas opiniões é uma
prática pouco conhecida entre aqueles que não fazem parte das religiões
afro-brasileiras: os terreiros de Candomblé, Umbanda e Jurema de todo o país
suspendem durante sete, 15 ou mesmo 40 dias (tempo da Quaresma) suas cerimônias
religiosas, toques de atabaques e oferendas que incluem sangue. Mais simbólico
ainda: nestes dias, os deuses se despedem temporariamente de seus filhos e
partem rumo a outro plano. Ausentam-se da terra.
Esse
silenciamento das casas afro religiosas cai como uma luva no período de maior
restrição próprio dos dias que antecedem o Domingo de Páscoa, e é justamente
essa espécie de emparelhamento de práticas (inclusive a suspensão de carne
vermelha na dieta) que leva a maioria dos adeptos das religiões de matriz afro
a atendê-la como uma forma antiga de respeito, enquanto outros questionam a
necessidade de sua permanência. “Uma religião impregnou a outra, nos
aproximamos de muita coisa. Toda festa que fazemos deságua nisso, mesmo que
tenhamos nos libertado há tanto tempo. Queiramos ou não, estamos muito inseridos”,
diz Pai Ivo de Oxum, babalorixá do terreiro de Xambá, em Olinda. Também
conhecido como Portão do Gelo (em referência ao antigo quilombo existente ali),
o espaço é um dos poucos em Pernambuco, atualmente, a manter a cerimônia do
Lorogun (ou encerramento, ou obrigação das bolsas), rito no qual os Orixás se
despedem e partem em direção ao Orum, que equivaleria ao céu. Só voltam ao
terreiro no Sábado de Aleluia, e é nesse entremeio que as obrigações da casa
são todas suspensas. “Me perguntam porque admito todos os santos. Mas é
respeito ao que as coisas são, à ancestralidade”, continua Ivo, que não enxerga
a prática como imposição. No Xambá, o Lorogun é chamado de encerramento e
acontece duas semanas antes da Páscoa. A cerimônia (ver arte) é fechada e só
filhos da casa podem participar da despedida temporária dos Orixás.
Juremeiro
e mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco,
Alexandre L’Omi L’Odò (que prefere chamar culto de matriz africana a Candomblé,
por entender este termo como algo pertinente aos terreiros baianos) concorda
com Pai Ivo. Para ele, essa assimilação que faz que os terreiros emudeçam na
Quaresma virou cultura, tradição. É, ainda, uma forma de resistência, mesmo
provavelmente seguindo a cartilha da Igreja Católica. Ao mesmo tempo, ele
percebe que a prática do Lorogun esta em declínio. “Existe um movimento de
terreiros, nacional, para que se toque na Semana Santa. O povo de santo esta
reagindo a esse processo de ficar preso no passado. É uma forma de afirmação:
não temos mais que aceitar os dogmas católicos”, observa, lembrando que esse
movimento antissincretismo foi deflagrado nos anos 80 por Mãe Stella de Oxóssi,
do Ilê Axé Opô Afonjá, na Bahia.
O
obrigatório cumprimento de longos períodos de silêncio e a própria cerimônia do
Lorogun são, de fato, repensados pela ialorixá Mãe Valda, do Sango Ayra Ibonã
(no Cabo). Ela não realiza a cerimônia de despedida dos Orixás e prefere
dedicar energia, tempo e dinheiro para reverenciar Pretos Velhos que, segundo
ela, representam os negros sacrificados naquele local, no qual existiu um
quilombo. “No terreiro de Pirapama, o cangerê dos Pretos Velhos é um ritual ao
qual sou proibida pelas entidades de deixar de fazer. Ele é a minha prioridade.
Outro motivo para não fazer o Lorogun é que estou com a casa aberta há apenas
seis anos e não tenho grande quantidade de filhos. Neste ritual são vários os
Orixás presentes”, considera (são 14 deuses na cerimônia). Ela entende, porém,
que o rito é antes de tudo um acordo com a Igreja Católica. “Então, no fundo,
não seria desrespeito não realizar as práticas”.
Mãe
Valda pontua, assim como outros autores que escreveram sobre a cerimônia, que o
Lorogun veio com a necessidade de se cultuar os Orixás sem as pessoas
perceberem. “Como o período da Quaresma corresponde a uma época de reclusão e
reflexão dentro da Igreja Católica, muitos terreiros de Umbanda e Candomblé
ficavam em uma posição delicada perto da comunidade católica e fechavam as
portas para não ter problemas com as autoridades locais e com as pessoas em
geral, quando poderiam ser acusados de desrespeitosos. Na Quaresma existe a
crença de que Jesus deu seu sangue por nós. No terreiro, lidamos com o sangue e
isso gera esta mentalidade, a de que não podemos curiar nenhuma animal nesta
época”, conta ela, que fecha o terreiro desde o Carnaval até o Sábado de
Aleluia (ou seja, cumpre toda Quaresma).
Chef
do Restaurante Altar (Santo Amaro), Iabassê Carmem Virgínia é um exemplo da
intensa mistura de práticas das duas religiões: na Semana Santa, prepara pratos
conhecidos nas mesas cristãs, como quibebe e moqueca. Também reúne a família
entorno da mesa e comunga. “Fui criada dentro do Candomblé por pessoas que
aceitavam tranquilamente a Igreja Católica. Sei que existe hoje o Candomblé nato,
com menos troca de Orixás por santos, mas faço questão de ressaltar que cresci
dessa forma, com esse sincretismo. O povo de santo não toma isso como um
problema”, comenta. Ela encerra os trabalhos somente na quarta-feira da Semana
Santa (chamada de Quarta-Feira Maior ou Quarta-Feria de Ferro Velho, enquanto a
quinta-feira é a Quinta das Trevas, outros nomes importados do catolicismo).
“Nestes dias, podemos preparar apenas o amalá (quiabo e pirão de farinha), que
é dedicado a Oxalá e não leva qualquer tipo de carne”. Carmem é integrante do
terreiro Ilê Axé Ogbon Obá, em Água Fria. Lá, Pai Everaldo de Xangô faz uma
pequena cerimônia e também encerra as atividades religiosas na quarta “por uma
questão de respeito”. “É um momento de reflexão, de purificação, de voltar a si
mesmo.” Faz jejum durante três dias, de quarta a sexta. “O tempo desse retiro
dos Orixás é determinado pela casa. Cada babalorixá, cada ialorixá, determina
como funciona a sua. Se pararmos muito tempo deixamos de cuidar de nossos
filhos.”
SEM
IMPOSIçÃO
José
Amaro da Silva, professor aposentado (Departamento de Música) da Universidade
Federal de Pernambuco e babalorixá do terreiro Obá Okosô, tem visão diferente
daquela dos colegas de religião: Segundo ele, não há registro histórico que
indique essa submissão do Candomblé ao catolicismo (em se tratando do Lorogun).
“Essa cerimônia não tem nada a ver com a ressurreição de Cristo. A religião dos
Orixás tem mais de 20 mil anos. Não há porque falar em imposição.” Lembra que,
criança, a cerimônia do Lorogun era feita com toda pompa e circunstância no
terreiro comandado por sua mãe. “A parada na atividade dos Orixás é uma
oportunidade para que eles recebam energia e orientação das entidades
superiores, como Olorun, para que tragam essa energia para seus filhos na
terra. É também quando eles vão prestar conta aos deuses”, diz afastando-se
assim da leitura de pesquisadores como Alexandre L’Omi L’Odò, para quem o
Lorogun é um momento no qual os Orixás partem para uma guerra. “Essa cerimônia
não ficou tão conhecida nos terreiros de Pernambuco. Esse costume foi trazido
na virada do século 19 para o 20 por Fortunata Maria da Conceição, conhecida
como a Baiana do Pina”, ensina. Professor do Departamento de Antropologia da
UFPE, Bartolomeu Figueiroa concorda com José Amaro: A idéia de uma imposição
não procede. Segundo ele, antes do Concílio Vaticano 2 (publicado em 1965), a
Igreja Católica ignorava a existência das religiões afro-brasileiras. Por outro
lado, estas sempre seguiram calendários litúrgicos da Igreja Católica. “Foi uma
prática que nasceu da necessidade de o Candomblé ser uma espécie de ancora na
cultura quase homogênea do catolicismo. Foi ainda uma maneira de atrair fiéis e
não se separar da raiz católica da maioria dos pais e mães de santo. O
catolicismo é mais velho na ordem mítica e simbólica. Na África por exemplo,
não existe essa coisa (a suspensão das atividades dos terreiros na Semana
Santa). O pessoal que vem de lá nessa época fica perdido aqui”, brinca.
A CERIMÔNIA
Passo
a passo do rito secreto do Lorogun, quando orixás deixam os terreiros e só
retornam no sábado de Aleluia
1-Ritual
começa, como todo aquele realizado no Candomblé, com uma obrigação para Exú.
2- À
noite, os filhos de santo enchem sacos de pipoca, identificados pelas cores
adotadas por cada Orixá. No terreiro de Xambá, isso é feito seguindo a ordem
dos 14 Orixás ali presentes, de Exú a Oxalá. No momento em que preenchem os
sacos, os filhos de santo cantam para as entidades.
3- Orixás
surgem para abençoar seus filhos. Vão saindo depois para o retiro.
4- As
quartinhas com água são todas esvaziadas. Só voltam a ser enchidas no Sábado de
Aleluia, significando renovação.
5- Os
portadores do despacho saem e o restante esperam no terreiro.
6- Todas
as luzes são apagadas e o peji é fechado. As imagens “no Xambá, de santos
católicos” são cobertas com um pano branco.
*Matéria do Jornal do
Commercio, 29 de Março de 2015, domingo. Caderno Especial JC Mais, páginas 6 e
7.
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CRÍTICA
AO CONTEÚDO DA MATÉRIA E AMPLIAçÃO DOS
CONHECIMENTOS:
Transcrevo
integralmente aqui a matéria acima. Como até o momento ainda não foi publicada
no site do Jornal do Commercio, deixo aqui todo o texto para os que não tiveram
acesso a este conteúdo. Muitas pessoas me solicitaram na internet, daí digitei.
Obrigado Mari Vasconcelos por ter ditado toda matéria pra mim, ajudou
totalmente.
Faço
aqui algumas observações sobre o texto, que provocou alguns equívocos de
entendimento ao público. Não entendam como resposta aos professores que
discordaram de minas falas, apenas preciso contextualizar alguns pontos para
ampliar e dar melhor caminho aos leitores no entendimento do tema abordado.
Começarei
apresentando algumas informações que corrigem alguns erros no texto:
1
– Portão do Gelo não dava nome a um quilombo onde hoje é o terreiro Xambá. E
sim, o terreiro hoje é um quilombo urbano. Anteriormente naquela localidade
(assim como em toda mata norte) o quilombo se chamava Catucá, na primeira
metade do século XIX. Portão do Gelo era (segundo relatos) o nome do portão de
uma fábrica de gelo que no passado existia na atual rua da Casa no bairro de
São Benedito em Olinda.
2
– Sobre indícios e registros da possível submissão dos cultos de matriz
africana ao catolicismo (obviamente sem ser uma submissão oficializada pela
Igreja) me parece evidente, devido ao contexto histórico de violência que
envolve a história de resistência do povo de terreiro no Brasil. Se a Igreja
detinha poderes políticos, inclusive de vida ou morte sobre os que não
compactuavam de suas práticas religiosas (vide inquisição), organizadamente os
“outros” criariam estratégias de sobrevivência para manter seus cultos
preservados. Parece-me, assim como para diversos historiadores como Marcus
Carvalho em seu livro Liberdade - Rotinas e Rupturas do Escravismo, Recife –
1822-1850, que os negros e mestiços desenvolveram diversas estratégias de
adaptação para garantirem a sobrevivência e continuidade de sua práticas
culturais e seus objetivos ligados a liberdade. Camuflar rituais africanos e
indígenas os sincretizando com atividades do calendário católico não é nenhuma
novidade. Algo muito óbvio. E isso considero submissão sim, um tipo de
submissão ligada a sobrevivência. Se não se cantasse na cartilha da Igreja, com
certeza as violências das mais complexas e terríveis possíveis chegariam aos
toques/celebrações dos negros. Sobre documentos sobre isso, ver João José Reis
em sua obra e tantos outros autores que trataram do tema escravidão no Brasil.
Lembro que assim como o Lorogun, as demais práticas sofreram pressão para se
adaptarem, mesmo supostamente o culto aos Orixás ter mais de 20 mil anos de
existência. A imposição foi concreta e efetivada a base de armas de fogo e
chibata.
3
– O termo “Lorogun” que em yorùbá se escreve Lórògun é um ritual que se realiza
no primeiro domingo após o Carnaval nos candomblés Ketu da Bahia. O termo (que
é uma elisão de uma frase em yorùbá) traduzido significa: Orò – ritual, somado a Ogun
– guerra ou batalha, que na tradição baiana é uma representação da mitologia
que revive a ida dos Orixás para a guerra com uma representação de batalha
entre dois grupos que se enfrentam (...). Ver (BENISTE, 2002, p. 158-159).
Quando
na entrevista falei que o termo significava ritual de guerra, ou que os Orixás
partiam para uma guerra, falei baseado no conteúdo acima revelado. Contudo,
compreendo inteiramente que em Pernambuco a prática é diferente da baiana, se
distanciando inclusive do significado do termo yorùbá por completo...
4
– Discordo completamente das afirmações do professor Bartolomeu Figueiroa –
“Foi uma prática que nasceu da
necessidade de o Candomblé ser uma espécie de ancora na cultura quase homogênea
do catolicismo. Foi ainda uma maneira de atrair fiéis e não se separar da raiz
católica da maioria dos pais e mães de santo. O catolicismo é mais velho na
ordem mítica e simbólica. Na África por exemplo, não existe essa coisa (a
suspensão das atividades dos terreiros na Semana Santa). O pessoal que vem de
lá nessa época fica perdido aqui”, brinca. (...)
Já
comentei sobre a questão da imposição... para mim não há dúvidas que houve
imposição. Ainda não entendo o que o professor quis dizer com “o Candomblé ser
uma espécie de ancora na cultura quase homogênea do catolicismo”, realmente
fiquei em dúvida... Espero que um dia possamos conversar sobre. Também discordo
da teoria de que o Candomblé se adaptou aos calendários cristãos para “atrair
fiéis”, nem proselitistas as tradições de matriz africana e indígena são,
portanto não há por que atrair fiéis. Ele ainda fala de uma suposta raiz
católica dos pais e mães de santo... Acho que o termo raiz não se enquadra
nesta situação, chega a ser forte demais. A raiz é africana, o catolicismo é a
tradição da inculturação e imposição... Outro erro é afirmar que o catolicismo
“é mais antigo na ordem mítica e simbólica”... Como, se a tradição africana
antecede a própria existência de Cristo? (...) E para informar, não existe
Candomblé na “África”. O que existe ainda são cultos às divindades ancestrais
(Orixá, Vodun, Inkisse e Egun etc.), práticas diferentes das daqui em diversos
pontos e convergentes em outros. Contudo, devemos observar que: A África não é
um país... E sim um continente. Ao falarmos que alguém veio do continente
africano devemos indicar qual país ele veio, se Nigéria, Togo, Benin, Gana,
Marrocos, Egito, Congo, Angola etc.
Sei
que em uma matéria de jornal não comporta tanta discussão... O espaço é pequeno
e tem muitas limitações. Ainda há a possibilidade dos jornalistas se
equivocarem nas transcrições das entrevistas... Portanto, tudo que escrevi aqui
apenas vem a somar na discussão. Deixo a pauta aberta para contribuições e
críticas, assim como as que estou fazendo livremente. O importante é trocarmos
saberes e não termos medo de estar errados. Por isso digo: Não vamos fazer um
Lorogun desnecessário com os pontos aqui levantados (haahhahahaahah).
Axé!
Sobô Nirê!
Alexandre L’Omi L’Odò
Quilombo Cultural
Malunguinho
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