sexta-feira, 29 de maio de 2015

Índios e Caboclos na Jurema Sagrada - Não em nome do “nosso Senhor Jesus Cristo”!

Primeira Missa no Brasil - Pintura de Victor Meirelles (1861). Fonte: Internet.

Índios e Caboclos na Jurema Sagrada 
Não em nome do “nosso Senhor Jesus Cristo”!

Hoje acordei com um pensamento que há alguns anos vêm me perturbando... Decidi problematizar um aspecto religioso interno da Jurema Sagrada que muito me incomoda e faz refletir. Irei tratar aqui exclusivamente da realidade da Jurema por conceber não ser pertinente a mim falar de umbanda e demais religiões de terreiro neste momento. Contudo, é constatável que em outras práticas como no Nagô, no Jeje, no Ketu etc. ainda as questões aqui discutidas, estão fortemente presentes e vigentes.

O aspecto ao qual me refiro é um dos mais comuns da nossa prática religiosa. É o da “chegada” dos índios(as) e caboclos(as) nas reuniões de mesa ou em festas de salão, cujo ao qual falam antes de qualquer ato: “salve nosso Senhor Jesus Cristo” e todos presentes respondem: “para SEMPRE seja louvado”. Não só os índios e caboclos se expressam dessa forma, também os mestres e mestras e outras entidades e divindades... Mas foco aqui neste texto as entidades e divindades indígenas, porque eles e elas foram os primeiros a sofrerem o massacre do catequismo cristão, que resultou nesta permanência e louvor aos valores do opressor em nossa fé religiosa.

Não só as entidades e divindades repetem estes predicados cristãos. Os juremeiros e juremeiras também repetem, fazem o sinal da cruz, rezam o Pai Nosso e reproduzem outros elementos simbólicos dos colonizadores. Muitos, mesmo tendo acesso há um pouco mais de informação, se mantém fechados a repensar estas questões teológicas nossas...

Este não é um texto que tem como missão determinar nada para ninguém. Não é um texto que se encerra em si, e muito menos que quer violentar e desrespeitar ou expor ninguém. Sou um sacerdote que respeita todas as fés e todas as formas de interpretar o sagrado e divino, porém, isso não me impede de refletir criticamente sobre os diversos elementos que envolvem questões culturais, sociais e teológicas nossas.

Altar dos índios e caboclos na Jurema. Foto de Marcelo Curia. MDS - UNESCO. Mapeamento dos Terreiros 2010 - Recife/PE.

Os índios foram catequizados. Sabe o que significa isso? Significa que tiveram sua cosmovisão de mundo delida por outra de valores completamente diferentes e violentos... Tiveram suas famílias violentadas, estupradas, corrompidas, suas crenças destruídas, suas línguas desaparecidas, sua cultura morta e sua fé e práticas litúrgicas próprias para sempre apagadas. Tantas cosias que jamais saberemos que existiram um dia, pois não houve tempo sequer de haver um registro escrito sobre divindades e entidades que povoavam estes povos indígenas em séculos passados... Isso tudo é profundamente terrível e infelizmente faz parte de nossa história. O holocausto indígena, financiado e proporcionado pela Igreja Católica e outros parceiros políticos, deixaram marcas, feridas históricas e sociais que jamais poderão ser esquecidas ou relevadas por todos nós. Não podemos ser cúmplices, omitindo os fatos.

Isso tudo é muito doloroso. E mais doloroso ainda é ver o quanto o massacre dos povos indígenas foi cruel e mesmo assim a passividade que foi introduzida na alma dos ancestrais, fazendo-os repetir os símbolos cristãos por medo e risco de morte, se mantiveram e até hoje são repetidas com apego profundo por todos nós. Por isso, creio que este é um ponto que devemos rever, mesmo que doa e fira àquilo que toda vida aprendemos de nossos padrinhos e madrinhas mais antigos na religião.

Vamos compreender mais: Mantemos vivos cotidianamente os valores do opressor. O colonizador que nos violentou, usou das mais diversas metodologias para nos convencer de que somos todos submissos a eles, e isso é muito sério e verdadeiro. Tão sério que nem percebemos o quanto somos manipulados cotidianamente por este plano de dominação que deu parcialmente certo em co-parceria com todos nós. Também somos culpados de nossa submissão! Somos tão culpados que insistimos em manter “valores alienígenas” em nossas práticas religiosas.

Não é de purismo religioso ou tradicional/cultural que falo. Afinal, não existe religião pura, ou cultura pura. Todos nós bebemos das fontes de diversas fontes que a trajetória histórica do homem/mulher deixou para a posteridade. Falo aqui que devemos enxergar que determinados elementos devem ser mudados, ou melhor, entendidos. Que devemos buscar os elementos mais próximos de nossas raízes ancestrais e tentar reconstruir (se possível ainda) uma identidade da Jurema mais ligada a valores de sua história indígena (mesmo grande parte dos terreiros hoje serem e estarem no mundo urbano).

Catolicismo popular, fés imbricadas, re-elaborações ritualísticas, sincretismos, hibridismo etc. tudo isso é pouco para acharmos que é assim mesmo que se devem manter as coisas como estão. Nada disso explica, justifica ou dá conta de nossa demanda histórica de resgate do que foi perdido. Nenhum desses argumentos científicos citados servem de fato para esta discussão, mesmo estes elementos sendo considerados como parâmetros que devemos também considerar. Por outro lado, o que foi perdido talvez não possa ser mais recuperado... Mas o que der pra recuperar, podemos fazer um esforço redobrado para resgatar, ou mesmo re-interpretar. E ainda repito, o que proponho aqui não é que todos nós saiamos agora de nossas casas e partamos em busca desesperada de valores indígenas originais etc. Ou que abandonemos nossas práticas tradicionais... Tudo que neste breve artigo escrevo é focado na proposta de uma provocação que espero que sirva para refletirmos amplamente e sem preconceito sobre este tema.

Quando vejo em uma mesa de Jurema um índio(a) ou caboclo(a) “baixar” e repetir o tradicional “salve nosso senhor Jesus Cristo”, inevitavelmente em meu coração se dissemina uma tristeza profunda. Também inevitavelmente meu tino racional me coloca a pensar no nosso passado e ver que é triste ainda hoje entidades tão sábias e antigas manterem traços da repressão violenta católica jesuíta. Sei que este “dizer” é muito pequeno perante a força das espiritualidades ali presentes. E que esta minha crítica pode não fazer sentido nenhum para as entidades tão antigas e juremeiros e juremeiras velhos de idade e de Jurema... Mas vejo que temos amor, e valorizamos os símbolos que nos violentaram e mataram (creio que ainda continuam matando e violentando simbolicamente e socialmente). E isso me revolta. Me dá uma inquietação profunda... E ao mesmo tempo me acalmo quando vejo que para além dos planos de dominação da Igreja, tudo que ela quis fazer não conseguiu por completo, pois se ainda existimos como juremeiros, é porque não venceram completamente e nem concluíram seu pano de dominação/colonização de almas e território geográfico. 

Na visão geral interna da Jurema, um índio ou caboclo quando “baixa” e repete o “salve nosso Senhor Jesus Cristo”, significa que ele foi doutrinado. Pois, nos processos de “evolução” dentro das mesas brancas de jurema (e lembro que esta palavra branca tem vários significados onde um deles é embranquecer as práticas ancestrais indígenas e africanas), os índios que “chegam” falando Tupi, ou outras línguas indígenas, devem saudar o “Senhor Jesus Cristo”, pra mostrar que ele é bom e está regenerado de sua condição selvagem. Portanto, as mesas de evolução ou desenvolvimento, como são chamadas, também são uma reprodução do catequismo católico jesuíta. Por vezes as mesas de desenvolvimento, mais parecem mesas de catecismo, do que, de Jurema. Daí percebemos mais uma vez que nossas práticas ainda reproduzem e perpetuam os valores do opressor colonizador cristão... Isso considero uma violência simbólica muito estruturante dentro de nossas liturgias. Por tanto, pergunto, será que “evolução” só pode ser considerada como algo dentro dos padrões cristãos? Pra mim evolução (não gosto desta palavra, pois pra mim não existe evolução) é o índio ou o caboclo “baixar” falando Tupi ou qualquer outra língua indígena existente nas Américas, livre dos signos ocidentais que os violentaram e mataram. Seria uma retomada do território simbólico/linguístico que perdemos em séculos passados.

Altar de Jurema demonstrando a presença do catolicismo popular convivendo com a tradição indígena. Foto de Marcelo Curia. MDS - UNESCO. Mapeamento dos Terreiros 2010. Recife/PE.

Por mais que a saudação seja re-significada, ou que seja apenas uma frase repetida sem muito aprofundamento teológico por parte dos juremeiros (aparentemente), ou que seja algo mecânico e sem uma reflexão profunda do que se fala, contudo, mesmo assim ainda compreendo que não devemos repetir inconscientemente estes elementos. Temos Tupã, Mãe Tamain, e tantos outros deuses e deusas da tradição indígena que podemos conhecer, por que nos mantermos louvando para SEMPRE Jesus Cristo, perpetuando a memória da fé cristã?

Será mesmo que estamos agindo de forma benéfica para com nossa memória ancestral? Será que nos mantermos passivos e conformados a este processo de (ao meu ver) de vilipêndio é algo saudável para nosso futuro religioso? Penso que devemos reagir. Sei que a prática do desapego é algo muito difícil. E sei que romper com valores historicamente estabelecidos é mais difícil ainda. Mas temos o tempo a nosso favor... Ele pode dar conta de nos ajudar a perceber e resolver nossas questões mal discutidas internamente. Temos um futuro, e este, deve ser muito melhor do que é hoje para nossos ascendentes, com mais liberdade humana e crítica com acesso a história.

Toda reza é bem vinda. Toda fé merece ser respeitada. A força da Jurema “também” está nas rezas cristãs, nos santos católicos, na hóstia etc. Mas o “TAMBÉM” aqui exposto nos dá a possibilidade de entender que isso é apenas uma parte do todo, e que o todo em seu pilar fundamental tem outros elementos mais fortes do imaginário indígena. Estes elementos nos ajudam a perceber o conflito por espaço de ambos os cosmos dentro da Jurema, portanto, é bom TAMBÉM enxergarmos de fora um pouco para percebermos o quanto ainda lutam por espaço os elementos simbólicos religiosos de ambas as tradições. Este conflito por espaço é importante, pois revela a ininterrupta transformação dos símbolos e sincretismos. “As religiões e as tradições não são estáticas”.

Gostaria muito de ver um dia em uma mesa de jurema “baixar” caboclos e caboclas, índios e índias, pajés, caciques, caboclinhos e outros encantos de luz falando em língua original e saudando seus deuses próprios, seria revolucionário... Também aprenderíamos muito mais com isso. Pois, estaríamos forçados a re-aprender a falar estas línguas para nos comunicarmos melhor com os ancestrais.

Só penso na filosofia Adinkra, cujo o símbolo Sankofa serve para interpretar ou dar caminho a este dilema. Sankofa é aprender com o passado para construir o futuro, em uma tradução livre minha. E acredito nisso profundamente.

Que estas provocações sejam entendidas pela comunidade do Povo da Jurema. E que possamos construir novos horizontes de discussão, com respeito e sabedoria. Ainda digo que este é um tema que pode dar margem a uma pesquisa de mestrado ou doutorado no campo das ciências da religião, antropologia, história ou sociologia. Busquem pesquisar mais sobre nossa religião, precisamos olhar pra nós mesmos!

Talvez eu fale todas estas coisas por ser um jovem juremeiro (em meu tempo e em meu lugar) e ter tido acesso, e ter buscado outras informações que me deram condições de refletir desta forma sobre nossas questões internas. E que a frieza racional que algumas vezes sobressai em minha escrita seja fruto de um processo de “academificação” que eu mesmo decidi aderir... Mas falo aqui como religioso, como sacerdote que deseja que sua comunidade se fortaleça e estabeleça uma prática permanente crítica sobre todas as cosias. Sei que tradição é tradição, e que conceitos não se mudam facilmente. Respeito tudo isso. E gostaria que este texto fosse lido por todos os juremeiros, para que as demais críticas ao mesmo e ao tema fossem registradas para completar a missão deste escrito.

Lembro que este “artiguete” provocativo não diz respeito a nenhuma outra religião e que deve interessar diretamente aos juremeiros. Isso aqui é uma discussão teológica interna, que publico na internet por este ser o único veículo de comunicação hoje capaz de fazer estas linhas chegarem a uma parte dos sacerdotes e adeptos que usam redes sociais e outros meios on line.

Salve a fumaça!!!
Sobô Nirê!

Alexandre L’Omi L’Odò
Quilombo Cultural Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com

2 comentários:

Mestre Melqui Jurema/Natal-RN disse...

Ouvi do Cacique Boró: Há 65 mil anos os Índios viviam sua vida com liberdade adorando suas divindades tribais e as divindades respondiam e orientavam os Pagés sobre os destinos das tribos.
Até que um certo dia chegaram uns homens extranhos em grandes barcos e traziam como símbolo uma cruz , símbolo do sofrimento com um Deus sacrificado e quando se virava essa cruz setransformava em uma espada símbolo de destrição e guerra, eram os homens brancos que truxeram consigo a guerra a destruição dos rios das matas as doenças e nesses 515 anos o genocídio dos povos indígenas. O Deus que eles adoram é um Deus de amor, compreensão, de cuidados com seu povo.
Melquisedec Costa da Rocha
Juremeiro Casa de Jurema Mestre Carlos
Bábàlòrìsà do Ilé Àse Dajo Oba Ogodó

Unknown disse...

Parabéns pelo texto.Meu nobre e caro Sacerdote! Sigo suas páginas e admiro muito seu trabalhos. Sem dúvidas temos que abrir nossas mentes e passar esses fundamentos a nossos afilhados.
Forte Abraço!

Quilombo Cultural Malunguinho

Quilombo Cultural Malunguinho
Entidade cultural da resistência negra pernambucana, luta e educação através da religião negra e indígena e da cultura afro-brasileira!