Alexandre L'Omi L'Odò em 2004, com os elementos de sua religião (gèrè Ifá e gèrè won owo ti Osún). Foto de Aluísio Moreira.
A
fé negra e o risco do branco dominador de mentes
Hoje em Recife (16/07), celebra-se Nossa
Senhora do Carmo, a sua padroeira, festa que tem 321 anos de existência,
portanto, muito antiga e tradicional na cidade.
O povo de terreiro, herdeiros da fé negra e
da fé indígena, portanto, a fé da resistência contra o poder do dominador
branco, em ato xenofílico (de agregação religiosa), celebra o sincretismo
histórico de Nossa Senhora do Carmo com o Orixá Oxum, divindade yorùbá,
responsável pela fertilidade da terra, pela força dos rios, pela beleza, pelo
amor e prosperidade.
Devemos lembrar que o sincretismo afro religioso
nos tempos da escravidão servia para que o senhor de engenho não mandasse matar
os negros e negras que estivessem cultuando suas divindades africanas.
Enganando esses seus algozes, colocavam uma imagem de um santo ou santa em um
altar e cantavam em língua africana (que ninguém entendia), para ludibriá-los.
Na realidade, ali estavam prestando culto aos seus orixás, voduns, inkises,
encantados etc. Assim, os padres e os capatazes não identificavam o que de fato
acontecia ali, e até achavam engraçado e bonito, mas foi isso que nos garantiu
a sobrevivência de nossa religião. Hoje isso não é mais necessário, obviamente.
Este sincretismo a cada dia vem se
enfraquecendo com o fortalecimento dos membros do candomblé (culto nagô de PE)
e da jurema, que em busca de estudos, compreendem que a santa católica não é o
Orixá, e vice e versa, e também entendendo que precisamos fortalecer nossa
identidade religiosa própria, tendo em vista que o universo cristão
historicamente destruiu quase todas as culturas dos negros e dos indígenas, utilizando-se
de um processo violento de proselitismo e catequismo, objetivando a “salvação”
das almas...
É difícil ser negro, pobre, de comunidade e
assumir a fé negra de nossos ancestrais. O mundo ainda é racista o suficiente
para fazer com que a maior parte da população negra se submeta a fé do
dominador. Isso não é nada mais que uma conseqüência psicológica do quanto
violento foi o processo de repressão de nossas fés e compreensão de mundo. Se achar dentro da religião de terreiro, com
toda a beleza e problemas que ela tem, é um desafio que tem que ser enfrentado
por pessoas que desejam retomar suas raízes e sua verdadeira identidade
ancestral.
O direito livre a escolha religiosa é um
direito constitucional garantido. Sendo assim, qualquer pessoa pode escolher
qual religião professar, ou até mesmo não ter nenhuma religião, ou ter várias.
Contudo, esta breve reflexão, serve para tentarmos ampliar nossa concepção de
lugar no mundo. Se nossos ancestrais sofreram o peso dessa conversão pesada e
violenta trazida no bojo do cristianismo europeu, por que nos submetemos? Será
que por termos uma estima muito baixa, preferimos acreditar no mais óbvio, no
que está posto como o Deus cristão? Será que realmente conseguiram sujar/embranquecer
nossas mentes e nos fazermos acreditar que Tupã, Olorun, Zambi, os Orixás, e os
Encantados são demônios e que devem ser esquecidos? O dominador tem muitas
estratégias... Ele tem poder ($) e tem grandes templos e concessões públicas de
televisão ao seu dispor.
Se desconstruir é muito difícil. Seja em que
contexto for. Mas se não nos propusermos a nos superar e mergulhar na força e
energia das tradições de nossos ancestrais, jamais conseguiremos sentir o quão
magnífico é a força de nossas entidades e divindades. Acordar para o axé e para
a ciência da jurema é necessário. Romper respeitosamente com o sincretismo,
muito mais! Temos que ter força e auto estima de afirmar que Oxum não está
ligada a nenhuma santa da Igreja, ou templo que nos perseguiu historicamente. Oxum
mora nos rios, na natureza e nos Ori (cabeças) de seus discípulos.
Nas comunidades, os terreiros competem com as
igrejas evangélicas de garagem que substituindo o papel da Igreja Católica,
promovem a perseguição à fé negra e indígena, satanizando e perseguindo os
seguidores de terreiro. Esta é uma recapitulação histórica do que foi no
passado o fazer religião cristão. O cristianismo não se renova, ele entra mais
uma vez no ciclo da perseguição e da verdade única, do Deus único, e da lógica
que o mal e o diabo está no outro, e não dentro deles mesmos, afinal, o diabo é
cristão, não fazendo parte da história e nem da fé afro indígena.
Infelizmente, essas investidas religiosas de
conversão tem dado muito certo... Muita gente de terreiro, ou negros e negras,
por serem fracos ideologicamente e estarem vulneráveis e sem auto estima
suficiente com o axé e a jurema, ou com a consciência negra, preferem acreditar
que foram salvas e que irão para o céu, do que entender que desonraram seus
ancestrais por terem se permitido desacreditar no bem maior deixado per todos
àqueles e àquelas que lutaram para que pudéssemos estar aqui hoje.
A pobreza e a injustiça social também são
responsáveis pela perda de auto estima na fé negra. As pessoas preferem
acreditar na teologia da prosperidade, de que Deus pode nos abençoar e nos
enriquecer, do que entender que religião é um lugar para o bem estar espiritual
e para o equilíbrio de suas questões pessoais etc. Essa teologia da prosperidade
é uma forte inimiga da fé negra e da luta contra o racismo. Ela apenas
fortalece o capitalismo, que é uma filosofia vigente e pujante, muito negativa
de concepção de mundo.
Ser descendente de negro e indígena e aceitar
a fé do branco, é se tornar branco. Branco não na cor, mas na compreensão de
mundo. Isso ao meu ver é uma das faces mais cruéis da realidade do negro pobre
brasileiro, os negros e negras que viram brancos e brancas (ver Fanon). Os aperreios
da vida os tornam brancos... A falta de dinheiro, a falta de oportunidades o
tornam brancos... Isso é muito triste.
Respeitar a diversidade de opiniões e de
religiões é fundamental. Este meu texto não trata de um desrespeito contra a
opção religiosa dos negros e negras que se tornam evangélicos ou católicos.
Este texto, fiz por entender que é necessário refletirmos mais sobre estas
questões que são vitais para a manutenção das tradições de matrizes africanas e
indígenas no Brasil.
Recife, hoje se veste de amarelo para homenagear
Nossa Senhora do Carmo. Outros se vestem de amarelo para louvar Oxum... Prefiro
louvar Oxum qualquer dia... Sem vinculá-la a nenhuma santa. Mas respeito quem o
faz e até acompanho algumas vezes as procissões, pois sempre encontro pessoas
maravilhosas lá. Afinal, lutar contra um processo de dominação de mais de 500
anos não é simples e requer muita paciência e respeito. Temos avançado
bastante. As redes sociais tem sido uma excelente oportunidade de fortalecer
nossos debates. Mas ainda temos muito o que contribuir na discussão e no avanço das compreensões
libertadoras de mundo. Não caiamos na lógica racista. Acordai!
Quando falta pretitude e consciência negra, o
branco entra em nossas mentes e nos convence que estamos errados nas nossas práticas
religiosas afro indígenas. Contra isso temos nossas raízes negras e indígenas.
É só se permitir vivenciar e mergulhar sem preconceito.
Axé.
Oré Iyéiyé ooooooooo!
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Alexandre L’Omi L’Odò
Juremeiro e Candomblecista
Historiador e Mestre em Cientista das
Religiões
alexandrelomilodo@gmail.com
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