Altar de Jurema com príncipes e princesas e imagens de índios e caboclos. Foto de Marcelo Curia.
Jurema
Sagrada, Dengue – Zica – Chikungunya e Responsabilidade com a Tradição de
Matriz Indígena e Africana
Há
pelo menos um ano um surto de Dengue, Zica e Chikungunya assolam o Brasil de forma
alarmante causando profundos problemas de saúde pública, sobre tudo com a
suposta ligação do aumento dos casos de microcefalia em crianças recém nascidas
dos municípios do Sertão com o vírus da Zica. Esta situação de risco coletivo,
nos impulsiona a responsabilizarmo-nos no combate ao mosquito transmissor
dessas doenças, o Aedes Aegypti, afinal, estamos todos em eminente risco de
vida.
Esta
responsabilidade não seria diferente para o povo de terreiro, que em suas
práticas tradicionais e religiosas acondicionam em quartinhas e outros
recipientes como assentamentos de Orixás, água limpa. No caso específico da
Jurema Sagrada, religião de matriz indígena do Nordeste do Brasil,
acondiciona-se água em assentamentos chamados de príncipes e princesas (taças e
copos dispostos em mesas/altares).
É
fundamental os sacerdotes e sacerdotisas, zeladores e zeladoras darem atenção
redobrada a estes assentamentos, quartinhas etc. Não podemos permitir que o
mosquito da dengue se prolifere dentro de nossos terreiros, prejudicando a
nossa saúde, a da nossa comunidade religiosa e entorno. Terreiro é saúde, é
acolhimento, é um hospital tradicional de medicina ancestral. Não podemos
permitir que a doença expanda-se a partir de nosso ambiente sagrado de
cura.Temos que dar o exemplo.
Contudo,
dar atenção redobrada, e sempre trocar as águas, cumprindo o calendário interno
dos terreiros que de sete em sete dias são despachadas e renovadas, além de
durante o período dos sete dias sempre observar se existe alguma larva ou
qualquer outro tipo de inseto nos recipientes, não significa mudar a tradição! Não
significa que devemos secar nossos assentamentos para nos prevenir das larvas do
mosquito da dengue.
A NOSSA TRADIçÃO é o
nosso maior documento histórico. Nela esta todo o discurso de nossos
ancestrais, e também nela reside o conhecimento e a sabedoria. A tradição
jamais deve ser modificada de forma brusca sem que o clã dos mais velhos possa
opinar de forma abrangente. Também, jamais podemos deixar de escutar nossas entidades
e divindades, eles nos orientam e podem nos garantir a segurança. Tradição tem
significado, e não pode ser tratada como brinquedo.
Não
devemos esvaziar o significado afrológico ou juremológico de nossas práticas esvaziando
nossas águas sagradas. Apenas devemos ter cuidado redobrado e nos
responsabilizar efetivamente com a questão em pauta.
Vale
a pena saber um pouco o significado da água para nossas tradições afro indígenas:
A
água para nosso povo, é o elemento da natureza mais sagrado e mais antigo. Propiciador
da vida, portanto, um elemento cheio de ciência e axé, utilizado praticamente
em todos os rituais tanto da Jurema como do culto às divindades africanas. É a
água que nos possibilita tudo na vida, portanto, como nos revela a cosmovisão/tradição
oral da Jurema, nela se encontram as Cidades e Reinos Encantados, ou Cidades e
Reinos Sagrados. Nas águas moram os caboclos e caboclas, os encantos de luz, os
mestres e mestras, os Reis, etc. Na mesa da Jurema, altar mor desta religião, a
água é vida literalmente, e também é a ponte de contato com o mundo dos
encantos, o mundo espiritual. Portanto, sem água não há ritual, e também não há
contato espiritual com a ciência mestra. Secar os assentamentos é uma agressão
à espiritualidade...
Sendo
assim, o impacto de modificações irresponsáveis em nossas liturgias, pode
apagar a memória essencial de nosso povo. Além de depor negativamente contra
nossa condição sacerdotal. Afinal, como podemos simplesmente secar nosso
recipientes sagrados? Ali não existe ciência ou axé? Não existe um dono ou
regente? As entidades não existem? Estas perguntas nos servem para refletir
sobre determinadas opiniões que estamos vendo na internet e na grande mídia. Recentemente,
pudemos assistir na Rede Globo uma orientação por parte de uma Iyá, de secarmos
os príncipes e princesas, quartinhas etc. Considerei isso grave. Mesmo que a
intenção tenha sido positiva, na perspectiva de nos proteger do mosquito e de
suas doenças, mas esta “orientação” agride profundamente a nossa história/TRADIçÃO.
Não
quero aqui dizer que temos que ser estáticos. Que nossa religião não dialoga
com as questões mundiais sociais etc. Estou apenas criticando e refletindo
sobre atos desnecessários e descabidos entorno de nossas práticas.
Às
vezes penso que o povo de terreiro é facilmente manipulável (não podemos ser!).
Chegando perto da inocência... Há algum tempo atrás, foi disseminado em
seminários etc. que não deveríamos mais beijar as mãos dos nossos filhos quando
eles nos pedissem a benção... Isso sob a orientação de que beijar a mão
transmite bactérias e conseqüentemente doenças... Daí, vê-se hoje babás e iyás,
juremeiros e juremeiras não mais beijando as mãos dos filhos e afilhados. A mão
é encostada no queixo ou na testa... Compreendo isso como algo não refletido
criticamente. Essa deformação na tradição não livra ninguém de doença nenhuma.
Durante séculos beijamos as mãos de nossos mais velhos com muito amor em ato de
troca de energia, e, não se tem casos registrados de doenças transmitidas por
este ato tradicional. Se for assim, devemos também deixar de bater cabeça para
os Orixás, afinal entramos em contato com o chão, e o chão, na concepção
ocidental é sujo... Não sei se me fiz entender!? ;)
Enfim,
este texto, foi feito para nos ajudar a pensar sobre nosso papel na preservação
de nossa memória. A tradição é um patrimônio imaterial de valor insubstituível.
É com a tradição oral que mantemos nossa cultura e religião vivas. Temos que
ter amor redobrado com o que herdamos da ancestralidade. Devemos amar e
preservar até as tradições que ainda não nos foram permitidas compreender, ou ensinadas.
Um dia quando compreendermos mais profundamente os significados dos atos e
liturgias, veremos que sua importância sempre foi fundamental para a manutenção
do equilíbrio do todo.
Vamos
nos proteger do Aedes Aegypti com consciência afro indígena. Não vamos conceder
ao ocidente o prazer de verem nossas tradições sumirem por causa de suas
orientações imperialistas. Estejamos acordados e lutando contra o racismo!
Alexandre
L’Omi L’Odò
Juremeiro,
historiador e mestrando em ciências da religião – UNICAP
Quilombo
Cultural Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com
3 comentários:
Ótimo texto Alexandre, como sempre bem coerente preocupado com a saúde pública e com a nossa tradição religiosa.Eu acredito que é uma questão de bom senso, realmente o uso da água na nossa religião é de suma importância porém estamos vivenciando um surto dessas doenças e a proliferação desenfreada desses insetos e é responsabilidade de cada cidadão manter o equilíbrio e o bem estar de onde si vive e esse é o momento de fazermos a diferença e essa foi uma boa dica ou seja devemos ser vigilantes quanto ao estado dessa água nos assentamentos e promover entre nossos irmãos essa prática de combate a esse surto e assim fazer a diferença e até mesmo participando no combate dentro das comunidades, vamos nos unir e fazer a diferença, e mostrar que é possível manter a nossa tradição sem trazer transtornos a saúde pública.
Concordo com sua colocação, estive em cidades do nordeste em todas as casas e cidades que estive, sempre encontrei casos de pessoas que tiveram dengue, zica ou chikungunha e em muitas um descaso enorme com recipientes com água ao ar livre. Chegando em São Paulo não vi diferença na conduta. Vejo isso como uma crise humanitária causada por falta de boa conduta.
Em relação as religiões afro-brasileiras acredito que devem sim manter suas tradições e um véu ou tampa resolvem todo o problema, acreditando assim que não haja conduta que falte a regra de seguir a tradição e o louvor ao nosso bem maior.
Em relação ao beijo na mão, fiquei chocada, pois realmente não sabia. Recentemente vi num documentário um capoeirista que foi chamado para ensinar numa igreja evangélica, mas alguns instrumentos"afros" não seriam permitidos! Como assim? Me pergunto, mas aí não deixa de ser capoeira?
Isso é feito a muito tempo com nosso povo, pegam o que querem e marginalizam o que não aceitam e infelizmente muitos sucumbem a esses devaneios. Acho que é hora de manifestarmos o que realmente somos, com toda a consciência e boa conduta que vem dos nossos ancestrais. Educando pelo exemplo. Axé!
Concordo com sua colocação, estive em cidades do nordeste em todas as casas e cidades que estive, sempre encontrei casos de pessoas que tiveram dengue, zica ou chikungunha e em muitas um descaso enorme com recipientes com água ao ar livre. Chegando em São Paulo não vi diferença na conduta. Vejo isso como uma crise humanitária causada por falta de boa conduta.
Em relação as religiões afro-brasileiras acredito que devem sim manter suas tradições e um véu ou tampa resolvem todo o problema, acreditando assim que não haja conduta que falte a regra de seguir a tradição e o louvor ao nosso bem maior.
Em relação ao beijo na mão, fiquei chocada, pois realmente não sabia. Recentemente vi num documentário um capoeirista que foi chamado para ensinar numa igreja evangélica, mas alguns instrumentos"afros" não seriam permitidos! Como assim? Me pergunto, mas aí não deixa de ser capoeira?
Isso é feito a muito tempo com nosso povo, pegam o que querem e marginalizam o que não aceitam e infelizmente muitos sucumbem a esses devaneios. Acho que é hora de manifestarmos o que realmente somos, com toda a consciência e boa conduta que vem dos nossos ancestrais. Educando pelo exemplo. Axé!
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