Alexandre L'Omi L'Odò fumando um cachimbo na Jurema, no X Kipupa Malunguinho. Foto de Carol Melo. Edição de L'Omi.
“Faltou
para muita gente”. Texto de reflexão sobre seu lugar de fala em relação aos temas
afro indígenas
Para compreender o que é liberdade negro
indígena, faltou para muita gente, muita coisa. Portanto, decidi escrever este
breve texto que aponta um pouco do que faltou para muita gente que quer assumir
uma discussão e um lugar que não é seu, no campo da luta negra e indígena e do
Povo de Terreiro.
Vejo pessoas apoiando o sincretismo religioso
como um fato imutável. Vejo pessoas assumindo falas que jamais poderiam ter
sido suas. Acompanho desenvolvimentos de teorias próprias e vazias que
contribuem para o fortalecimento do racismo. Temos que conseguir debater melhor
esses temas. Temos que nos posicionar e conversar sobre. Calar é o pior
caminho. Na luta pelo Povo da Jurema, aprendi muito a ouvir e vivenciar a
profundidade dos significados. Por isso, falo abaixo do que faltou para muita
gente, na hora de uma fala sobre temas que envolvem nossas lutas, cultura,
religiões e povos.
Faltou para muita gente:
Faltou para muita gente
acordar ao som de tiros.
Faltou para muita gente ver
o sol nascer em uma favela.
Faltou para muita gente ter
lutado em Peixinhos.
Faltou para muita gente a
possibilidade de ter trabalhado do GCASC – Grupo Comunidade Assumindo Suas
Crianças.
Faltou para muita gente ter
capinado e limpado o Nascedouro de Peixinhos.
Faltou para muita gente ter
ouvido Rivaldo Pessoa falar sobre cultura negra.
Faltou para muita gente ter
vivenciado os dias áureos do Alafin Oyó.
Faltou para muita gente ter
ido à Colônia Z4 dançar o afoxé.
Faltou para muita gente
debater com brancos e ser subestimado, mesmo estando certo, só por que você é
pobre e de terreiro.
Faltou para muita gente ter
ido ver o Maracatu Leão Coroado ensaiar em Águas Compridas.
Faltou para muita gente ter
conhecido Dona Zuleide de Paula e ter conversado horas com ela sobre luta
comunitária e história de base.
Faltou para muita gente ter
vivenciado as atividades da Biblioteca Multicultural do Nascedouro de
Peixinhos.
Faltou para muita gente ter
podido ser do Boca do Lixo.
Faltou para muita gente ter
ouvido o Ataque Suicida no palco.
Faltou para muita gente ter
tido aulas de percussão com o genial mestre Toca Ogan.
Faltou para muita gente ter
conhecido Sr. Matias, e seus filhos Marcos Matias e André Malê, mestres extraordinários.
Faltou para muita gente ter
tocado no Bloco Mulambo.
Faltou para muita gente ter visitado terreiros paupérrimos
nos morros e becos do Recife e Região Metropolitana.
Faltou para muita gente ter dado Cosme Damião e feito
quebras panelas nas ruas dos bairros.
Faltou para muita gente ter passado um mês de quarto em
recolhimento religioso para o Orixá.
Faltou para muita gente ter lutado pelas cotas raciais
nas universidades.
Faltou para muita gente ter
conversado com Massapê e visto suas músicas e poesias.
Faltou para muita gente ter
saído de Peixinhos andando até Vila Popular para visitar o terreiro de Pai Raminho
de Oxóssi.
Faltou para muita gente ter
tocado ou dançado do Afoxé Ará Odé.
Faltou para muita gente ter
ido às ruas lutar pela democracia.
Faltou para muita gente ter
podido ouvir com atenção o Bloco Afro Lamento Negro.
Faltou para muita gente ter
tocado ou dançado no Magê Molê.
Faltou para muita gente ter
podido protestar contra o genocídio da juventude de Peixinhos em décadas
passadas.
Faltou para muita gente ter
ouvido Olodum com atenção.
Faltou para muita gente ter
visto o Timbalada e sentido sua mensagem negra com profundidade.
Faltou para muita gente ter dançado dentro do Ilê Iyê e ter ouvido seus antigos LP's.
Faltou para muita gente ter
podido participar de uma aula com Lepê Corrêa e ouvido seus ensinamentos.
Faltou para muita gente ter
podido conhecer Sr. Luiz de França.
Faltou para muita gente ter
conhecido o Mestre Dió (Deodato), gigantesco juremeiro.
Faltou para muita gente ter
comido pirão de café, por falta de feijão.
Faltou para muita gente ter contribuído
nos trabalhos em prol aos meninos e meninas de rua no Recife, a partir do CPP.
Faltou pra muita gente ter
conhecido Demétrius e seus sonhos e coragem de transformar a realidade dos
desvalidos.
Faltou para muita gente ter
ouvido Chico Science com maior sensibilidade.
Faltou para muita gente ter
conhecido o Sr. Amaro Fala Fina.
Faltou para muita gente ter
conhecido João Meira de Peixinhos.
Faltou para muita gente ter
visto o Balé Afro Akindelê e o Expressão Afro Brasil, ambos comunitários e
feito por pessoas muito pobres.
Faltou para muita gente ter
visto o Omo Lasó Àiyé nos palcos.
Faltou para muita gente ter
visto Dito de Oxossi falando sobre povo negro.
Faltou para muita gente ter
ouvido Cacique Chicão.
Faltou para muita gente ter
lido os livros de Fanon e de Abdias Nascimento.
Faltou para muita gente ter
conhecido a obra de Mestre Didi e ter-lhe pedido a benção.
Faltou para muita gente ter
olhado com mais respeito para Carlinhos Brown.
Faltou para muita gente ter
rasgado a bíblia de dentro de si.
Faltou para muita gente ter
conhecido o insubstituível mestre negro Babá Paulo Braz Ifátòògùn.
Faltou para muita gente ter
rezado com Mãe Lu Omitòògùn o mês mariano.
Faltou para muita gente ter
visto o Mestre Sibamba incorporado na matéria da grande juremeira Dona Leide.
Faltou para muita gente ter
conhecido Rolando Toro.
Faltou para muita gente ter
lido os discursos de Osho.
Faltou para muita gente ter
conhecido a Banda Etnia.
Faltou para muita gente ter
gargalhado ao som de Dona Selma do Coco.
Faltou para muita gente ter
sambado junto à Mestre Salustiano e visto suas aulas de Rabeca.
Faltou para muita gente ter
estudado a língua Yorùbá.
Faltou para muita gente ter
conhecido Oxum.
Faltou para muita gente o
conhecimento sobre a luta de Malunguinho e do Quilombo do Catucá.
Faltou para muita gente ter
acreditado que seria possível estudar e romper o status da pobreza a partir dos
estudos.
Faltou para muita gente ter
votado em Lula.
Faltou para muita gente ter
lutado de fato contra o Golpe.
Faltou para muita gente ter
ouvido e lido Lecí Brandão e Mertinho da Vila.
Faltou para muita gente ter lido umas poesias de Solano
Trindade.
Faltou para muita gente ter
vivenciado um verdadeiro Movimento Negro.
Faltou para muita gente ter
fumado um cachimbo com os parentes indígenas.
Faltou para muita gente ter
conhecido as poesias de Oriosvaldo de Almeida.
Faltou para muita gente
parar para refletir sobre o sincretismo.
Faltou para muita gente ter
tido coragem de romper com as correntes que nos escravizam no capitalismo.
Faltou para muita gente
coragem de superar.
Faltou para muita gente
sensibilidade.
Faltou para muita gente ter
conhecido Mãe Ivanize de Xangô.
Faltou para muita gente ter
parado para ouvir os saberes negros do Mestre Afonso do Maracatu.
Faltou para muita gente ter
presenciado a incansável fé de Gilson Gomes na dança negra.
Faltou para muita gente
vivenciar a mata sagrada de Malunguinho.
Faltou para muita descalçar
os pés no Kipupa e receber a fumaça divina da Jurema.
Faltou para muita gente
conhecer Paulo Queiroz e sua superação social através da dança.
Faltou para muita gente ter
ouvido Chico Buarque de Holanda e refletir a partir de suas críticas musicais.
Faltou para muita gente ter participado das atividades do
Axé Opô Afonjá, nos bons tempos.
Faltou para muita gente ter vivenciado as edições de ouro
do Alaiandê Xirê.
Faltou para muita gente o convívio negro com Rita
Honotório.
Faltou para muita gente ter
conhecido a teologia da libertação.
Faltou para muita gente ter
sentado aos pés do Iroko do Sítio de Pai Adão.
Faltou para muita gente ter
ouvido Dona Mãezinha falando e cantando.
Faltou para muita gente ter
visto Paulo Braz Ifátòògún dançando... Esse sim era inesquecível.
Faltou para muita gente ter
prestado atenção no pensamento de Davi Kopenawa.
Faltou para muita gente
ouvir os velhos incansavelmente.
Faltou para muita gente ter participado das edições do Congresso Nacional do Desfazendo Gênero.
Faltou para muita gente ter
passado horas e horas limpando penas de galinha de uma cerimônia para os
Orixás.
Faltou para muita gente ter
visto o milagre de Ògúnté Mi, que materializou um peixe-boi no mar, em
decorrência a entrega da Panela de Iyemojá.
Faltou para muita gente ver
Ògúnté em terra dançando... Isso é Deus/Deusa puro.
Faltou para muita gente ter
ouvido José Jorge de Carvalho e suas geniais lucubrações.
Faltou para muita gente ter
amado pessoas loucas.
Faltou para muita gente ter
se entregado à tudo que pode nos edificar em prol da luta contra o racismo.
Faltou para muita gente
muita coisa negra e indígena.
Faltou para muita gente reconhecer que é branco ou branca
e que seu lugar de poder é um desafeto para o povo que luta.
Faltou para mim tanta coisa, ainda assim...
Portanto, antes de falar, ou
contestar o debate decolonial, antes de querer construir um discurso
conformista sobre o sincretismo e a relação do cristianismo com o povo de
terreiro, veja de onde, e em que condições você está falando. Mesmo sendo democrático
o direito de opinar sobre qualquer coisa, creio ser necessário uma reflexo sobre
seu lugar de fala. Calar por vezes é necessário. Abra-se para a desconstrução.
Tem muita gente sábia que há anos luta para tentar realizar um processo de
libertação ideológica ampla para o povo negro e indígena. Se junte a nós, venha
caminhar conosco, venha ser parte de um mundo do bem viver e da harmonia
social. Venha carregar um bombo nas costas e tocar um maracatu sem reclamar que
está doendo os calos causados pelas baquetas na mão.
Salve a fumaça e que não
falte para ninguém o direito da luta anti racismo.
Sobô Nirê Mafá!!
“Malunguinho no mundo, é meu
braço direito”.
Alexandre L’Omi L’Odò
Quilombo Cultual Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com