Babalorixá e Alapini Paulo Braz - Ifátòógún. Foto de Marcelo Curia - RS.
Tio Paulo Braz - Ifátòógún - Um sacerdote indescritível
*Alexandre L'Omi L'Odò
O amor é algo ainda indescritível, com poucas palavras não podemos o definir e, nem com muitas também não conseguimos satisfatoriamente descrevê-lo sobre tudo pelo seu profundo contexto particular e individual. Ele não é igual para todos. É assim que posso definir o senhor Paulo Braz Felipe da Costa, o Tio Paulo, ou Seu Paulo, babalorixá, alapini e grande preservador e dinamizador da tradição nagô pernambucana. Um homem feito de amor, amor aos Irunmolé, amor aos Eguns, amor a memória de seus ancestrais familiares e, amor a todos e todas que o cercam e aprendem com este generoso, profundo e sábio professor, discipulado de seu pai carnal.
Nascido em 03 de fevereiro de 1941, teve sua volta para a terra prevista pela Jurema Sagrada, através do Mestre Zé Deitado, que anunciou hora e dia de seu nascimento e ainda profetizou que aquele menino especial “trabalharia até com os astros”. Nascido no dia de São Braz recebeu o sobrenome do Santo católico, que é invocado para curar engasgamentos e problemas na garganta. O menino Paulo, também “chorou na barriga da mãe”, sinal de grande mediunidade e poderes divinatórios, segundo conta a tradição nordestina. E assim, nasceu “já preparado” o recém parido sacerdote, filho carnal do memorável babalorixá Malaquias Felipe da Costa – Ojé Bií (nascido para ser Ojé) com a mestra juremeira Dona Leônidas Josefa da Costa (Omisèún), que era também filha de Oxum Ijemú.
Bisneto do Alapiní de Oyó Obá – Lagos/Nigéria Adifábolá, que ao ser escravizado no Brasil recebeu o nome de Sabino Felipe da Costa e, neto biológico do famoso babalorixá Pai Adão – Felipe Sabino da Costa (Opeatoná) - Pai Adão recebeu o nome de seu pai ao contrário -, Pai Paulo tem no sangue a força da realeza africana, conseqüentemente o axé yorùbá fidedigno das terras nigerianas.
E, é evidente isso para quem o conhece. Ao olhá-lo pela primeira vez, percebe-se essa força negra, esse axé que emana da forma simples de se comunicar e de interagir conosco. Só o seu olhar expressa essa força... E muito mais. Até dá pra dizer que ele é a teologia afro! Completamente.
Ele é um homem de corpo livre. Dança e canta como ninguém... Pula, brinca, fala yorùbá com compreensão total e se diverte com o axé, se diverte ao invocar as divindades e espíritos, expressa toda sua alegria em viver com seus gestos. Digo que ele curte mesmo cultuar... Tem uma energia feminina brilhante que se mostra em sua generosa ação de acolher os que o procuram. Participar de qualquer ritual com ele é dar-se o direito de mergulhar profundamente em uma memória tão bem preservada ancestral que nos emociona e nos questiona sobre o que é de fato o saber... No caso dele, o saber é igual a ser, igual a estar, igual a viver o odú de seu caminho de forma pragmaticamente indivisível da vida externa ao espaço sagrado do terreiro. Ele é um exemplo real do iwá pélé (“caminho do equilíbrio, da honra e da dignidade”).
Sempre relembra emocionado: “tudo quem me ensinou foi meu pai”! Pai este que hoje é um Egun de muita importância para todos os terreiros em Pernambuco. Cultuado de forma vibrante no Ilé Ibó Akú (Balé) em sua casa, o Ilé Iyemojá Ògúnté, casa de tradição nagô também dirigida pela sacerdotisa Maria Lucia Felipe da Costa, Mãe Lu, ou Tia Lu – Iyemojá Omitòógún (àquela que cura com as águas, ou que as águas são remédio e tem poderes mágicos), sua irmã, herdeira da mesma Iyemojá de seu pai, “que ainda vem à terra”... E que o ajuda a manter este axé vivo com seus outros irmãos, o Pai Cicinho de Xangô (Obárindè) e a Mãe Zite de Oxum Ipondá.
Em novembro de 2009, foi comemorado os 100 anos de Ojé Bií, com uma festa em sua homenagem no terreiro. Foi um momento mágico, de re-alimentação de história e memória entre a família. Todas e todos passaram um dia inteiro a cantar, lembrar fatos, contar histórias e dar oferendas ao Seu Malaquias, que foi um dos mais energéticos sacerdotes pernambucanos, grande aprendiz de seu pai Adão e fiel seguidor de seus ensinamentos e práticas, sobre tudo na língua yorùbá, tão bem preservada e falada entre este clã familiar.
O Seu Paulo teve uma vida bastante heterodoxa profissionalmente. Pernambucano, não poderia fugir as suas origens, portanto, o carnaval invadiu sua vida, levado pelas mãos de seu próprio pai. Foi presidente do Bloco Carnavalesco Madeira do Rosarinho entre 1967 a 1975, “em um império” de muito sucesso. Seu pai, também foi presidente deste mesmo bloco em 1944. Em 1974, foi tesoureiro da agremiação. Gafieira e carnaval embalaram sua juventude recifense. Ainda foi secretário do 13 Atlético Clube e fundou a escola de samba A Charanga que posteriormente transformou-se em Escola de Samba Couro de Bode, que ainda hoje está em atividade na Cidade de Camaragibe/PE.
Formado em contabilidade comercial e taquígrafo profissional, trabalhou no Banco Irmãos Guimarães. Iniciou servindo cafezinho, mas logo, ao perceberem sua inteligência e capacidade profissional o promoveram para escriturário. Foi em 03 de fevereiro de 1965, dia de seu aniversário que se empregou oficialmente pela primeira vez. Sempre relembra: “Meu avô Adão e meu pai queriam muito que todos os seus filhos tivessem anel no dedo, mas infelizmente as condições da família não davam na época”. Portanto, a maioria aprendeu um ofício, como carpinteiro, costureira, serralheiro etc. relata.
Após provar sua capacidade como escriturário, foi mais uma vê promovido à contador do Banco, e isso “sem anel no dedo”, fala rindo, ao lembrar das dificuldades e racismos sofridos por ele neste período. Fala que era difícil um negro chegar ao alto escalão de um banco, lugar aonde ele chegou, e que isso provocou a ira de muitos ditos brancos na época, sobre tudo porque ele ainda avançou mais e foi gerente de expediente e depois gerente administrativo da empresa.
Acabou tendo que se mudar para morar em João Pessoa na Paraíba por causa do trabalho. O Banco exigiu... Até hoje ainda mora lá, no bairro do Beça, com esposa e filhos.
Aposentado, hoje vive entre Recife e João Pessoa, mas nunca abandonou o terreiro. Às vezes deixava de ir trabalhar para cumprir seus compromissos com os Orixás e Ancestrais.
Filho de Omolú com Oyá traz em si mesmo os símbolos destas fortes divindades. Mesmo se intitulando filho de Iyemojá Ògúnté, já que esta tradição é familiar, todas e todos são filhos do Orixá patrono da família, mesmo cada um tendo suas individualidades de odú.
Carrega os orikí – Omobabálaiyé (filho do senhor das terras) e Ifátóògún (Ifá foi seu remédio, ou o curou). Este último, só recebeu após ter sofrido problemas sérios de saúde após uma trombose. “Fui curado por Ifá” revela. Já que após ter adquirido seqüelas físicas, foi indicado pelo médico à ler bastante em voz alta, para exercitar os movimentos e coordenação da fala e fortalecer a memória. Assim o fez... Portanto, foi presenteado pelo seu amigo nigeriano yorùbá e filho de santo, com um livro sobre o Ifá... Leu, leu e leu... E aprendeu tudo do livro... Assim obteve sua saúde e movimentos corporais e memória de volta.
Depois, se iniciou no Ifá com Ajibolá e adentrou muito mais nos saberes do oráculo dos Orixás. Hoje, o próprio Ajibolá atesta: “Pai Paulo me passou no Ifá”, em gesto humilde.
Por ele ser contador de profissão e ter trabalhado a vida toda com números, o Ifá não foi nada difícil para aprender. Rápido se acostumou com o sistema do Opon Ifá e do Opelé e até hoje joga como ninguém. Um jogo com ele é inesquecível, além de ser uma aula competente sobre cultura e tradição nagô. Também joga os búzios, dentro da tradição de odú nagô pernambucana.
Criativo e dinâmico tem dado contribuições indeléveis à tradição de culto aos Orixás. Suas últimas investidas têm sido na tradução de toadas cantadas no nagô tradicional e também acrescentando alguns cânticos esquecidos pelo povo de terreiro por causa do problemático e cruel processo da “diáspora”.
Ele também é um pesquisador... E bom pesquisador! Tem em seu acervo de livros e raridades antigas, algumas ainda do tempo de seu pai e, adora buscar nas literaturas nigerianas elementos para incluir de forma pertinente ao seu culto.
Sempre diz: “O King (um de seus referenciais de pesquisa) é muito desentoado”, e por isso ele recriou e deu novas melodias, “baseadas na entonação de seu pai” às toadas registradas por Sikiru Sàlámi – o King, em seus livros e tese.
Um bom exemplo está registrado no CD do Maracatu Raízes de Pai Adão, intitulado de Cânticos Yorùbá, onde o Seu Paulo dá um show de língua, ritmo, afinação e entonação cantando as toadas pesquisadas e trabalhadas por ele em ritmo de maracatu.
Ele sempre diz: “As toadas estouraram nos terreiros por ai”... Em tom de felicidade, por ter podido contribuir de forma concreta com sua tradição. Muita gente canta, e as toadas até parecem que foram cantadas toda vida nos terreiros por aqui. É bonito de ver e ouvi-lo cantar para Oduduwá em uníssono com seu terreiro lotado:
“Ire l’ówó ori mi o.
Íre lówó ìrún-malè o.
Àsè lówó Odùdúwà.
Mo mu olà.
Mo mu ire bo wa o o e e.
Orí mi ma, ba mi se o o e e”.
“A sorte está com meu orí.
A sorte está nas mãos do Ìrúnmálè.
O axé está nas mãos de Oduduwá.
Eu trouxe prosperidade.
Eu trouxe sorte comigo.
Meu Orí me ajudou”.
(Cântico extraído do livro de Sikiru Sàlámi, 1993 - pag. 53-54)
Com sua generosidade, faz questão que todas e todos aprendam a cantar e a entender, pois ele afirma que tudo isso “é um resgate daquilo que morreu com àqueles e àquelas que partiram para o Orún para nos manter vivos hoje, e que nos sustentam”. Com orgulho canta e traduz tudo... Mostra “a sabedoria de seu pai”.
Por isso digo, descrever o Seu Paulo é difícil como falar do amor. Falar dele também dá em poesia e também em consciência negra. Enfim, é indescritível este sacerdote histórico e fundamental na manutenção do nagô no Brasil, ele e sua família são representantes reais do iwá pélé, os portadores do axé!
_____________
* Texto comemorativo de aniversário. Parabéns pelos seus 71 anos nos dando alegria a todos - Babá Paulo Braz.
*Este pequeno artigo foi construído a partir de entrevista concedida a mim por Seu Paulo em março de 2011. Também, este texto é parte da pesquisa histórica que está em andamento no Ilé Iyemojá Ògúnté para construção de seu inventário, sob a responsabilidade do Quilombo Cultural Malunguinho.
Visitem seu site:
Olinda/Peixinhos - 03/02/2012.
Alexandre L’Omi L’Odò
Quilombo Cultural Malunguinho