Imagem em gesso da suposta "Malunguinha da Sorte", registrada no Mercado de São José dia 21 de Janeiro de 2016 por Alexandre L'Omi L'Odò.
"MALUNGUINHA DA SORTE"
e as contradições juremológicas
Por mais que eu compreenda que a nossa tradição religiosa seja aberta a novos acolhimentos juremológicos e afrológicos, não consegui absorver ainda a ideia de haver uma representação de gesso, do gênero feminino, de Malunguinho. Esta estatueta esta sendo chamada pelos vendedores do Mercado de São José de "Malunguinha da Sorte".
Ao fazer compras no Mercado de São José, no dia 21 de Janeiro de 2016... Deparei-me com esta imagem que vos apresento na fotografia acima. Fiquei abismado de ver a mesma estátua que representa o Malunguinho trunqueiro/Exú, com brincos, um suposto batom dourado e um laço muito estranho vermelho na cabeça... Fui tomado por um sentimento confuso de surpresa e grande rejeição...
Nunca pensei que o imaginário popular pudesse ser capaz de criar algo assim. Afinal, sabemos que a tradição oral preserva os fatos históricos por milênios através dos cânticos, danças, provérbios, comidas, liturgias, contos, mitos, etc. Sendo assim, podemos constatar claramente a confiável metodologia de preservação da história dos indígenas e dos africanos observando o que se conhece hoje na Jurema Sagrada, no tocante ao culto à Malunguinho, que na primeira metade do século XIX foi (ou foram) líder do quilombo mais forte depois do de Palmares na história do Brasil - o quilombo do Catucá -. A história oficial não preservou a memória de Malunguinho, mas os terreiros de jurema preservaram de forma muito forte. Hoje, a Jurema em Pernambuco tem em Malunguinho uma de suas maiores divindades. Ele ocupa o cargo de Reis da Jurema, o Reis das Matas, que se "manifesta nos terreiros nas quatro linhas: Caboclo, Trunqueiro/Exú, Mestre e Reis. Esta preservação da memória de Malunguinho, é um indício muito forte de que o povo da jurema sabe o que faz e valoriza seus heróis. No caso de Malunguinho, ele foi deificado, recebendo devoção do povo da Jurema cotidianamente decorrente a sua importante contribuição na luta por liberdade de seu povo (o negro e indígena).
Isto posto, já nos ajuda a desconfiar de que a invenção atual de uma suposta "Malunguina da Sorte", seja um equívoco profundo. Afinal, não se manteve até então na tradição oral nenhuma menção à uma "Malunguinha" na história do Catucá ou em qualquer outro lugar. Como não se canta e não se mantém culto à "Malunguinha" na jurema, ela não existiu... Mas este argumento pode ser insuficiente, embora para mim bem convincente.
Este texto não é um discurso machista! Aqui não quero negar a existência de mulheres importantes dentro da luta no quilombo do Catucá. Pelo contrário, a própria documentação histórica revela alguns nomes que tiveram importante relevância na luta por liberdade dos quilombolas de Malunguinho. Elas eram: Joana, Luzia, Maria, Antonia e Genoveva, guerreiras que batalharam junto nesta luta por liberdade e reforma agrária.Sem mulheres jamais haveria um quilombo forte. Elas foram base essencial para o longo tempo de lutas bem sucedidas do Catucá. Contudo, elas jamais forma chamadas de "Malunguinhas" ou algo similar.
Me desafiei a pensar mais para não resumir este fato da "Malunguinha" a uma crítica leviana para a sua desconstrução. Em minha análise imediata compreendi que esta imagem representava uma distorção completa da história de Malunguinho: ou por parte dos vendedores que estão unicamente interessados em vender. Ou por parte dos artesãos que fazem as imagens... Ou ainda por parte de algum sacerdote ou sacerdotisa que tenham inventado esta personagem...
Procurei também averiguar as variações linguísticas gramaticais do kibundo (língua bantu falada ainda hoje em Angola). No kimbundo não há flexão para a palavra malungo (que significa amigo de bordo, parceiro de luta, amigo, companheiro etc.). Não há um feminino de malungo nos dicionários desta língua que consultei. A palavra malungo deu origem ao título dado aos líderes do Catucá: Malunguinho. O título Malunguinho não é nome próprio, é bom lembrar. E a palavra malunga tem diversos significados, como demonstro agora:
3 - Segundo a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana de Nei Lopes, Malunga é uma espécie de dobradiça de porta...
Contudo, na língua portuguesa do Brasil é possível transformar Malunguinho (palavra híbrida formada no nosso país) em Malunguinha. As flexões de nomes do masculino para o feminino são correntes nas normas de nossa língua coloquial e culta. O "inho" e "inha", no sentido de diminuitivo carinhoso ou pejorativo são comuns, daí falar "malunguinha" é possível sim, pelo menos em termos linguísticos.
Afinal, na história dos líderes do Catucá jamais houve uma MALUNGUINHA citada nos documentos históricos pesquisados pelo PhD em História Marcus Carvalho, que fez uma enorme pesquisa que foi sua tese. Em seu livro, "Liberdade, rotinas e rupturas do Escravismo do Recife - 1822-1850" não existe menção alguma a qualquer líder feminina do Catucá com o nome de "Malunguinha", muito menos menção à uma "MALUNGUINHA da Sorte". Vale ressaltar.
Ainda me foi informado pelos vendedores do Mercado que esta imagem é vendida no catálogo oficial das Imagens Bahia, coisa que me deixou mais preocupado ainda... Fui a busca de mais informações e achei as seguintes referências no site oficial da empresa:
5 - Ainda achei uma imagem muito interessante de uma Calunguinha a Cavalo, que é a mesma imagem do "Erê" Pretinho da Sorte em outra posição em cima de um cavalo: http://imagensbahia.com.br/?post_type=produtos&p=1824 mas esta não tem anda a ver com esta discussão... Apenas achei interessante por ser o mesmo pretinho representado de forma diferente.
Imagens da Pretinha da Sorte e do Pretinho da Sorte juntos. Segundo informações de alguns amigos de SP estas imagens são compradas para dar sorte nos terreiros de umbanda. Foto: acervo pessoal.
Ainda vale apena fazer uma comparação entre a imagem do Pretinho da Sorte com a imagem conhecida de Malunguinho Trunqueiro/Exú em Pernambuco... O Pretinho da Sorte embora seja totalmente pretinho e sentado na mesma posição do Malunguinho, ele tem um boné azul na cabeça, está olhando para frente e tem uma base quadrada que o sustenta. No caso da Imagem de Malunguinho, não há boné, ele está olhando sempre para o lado e não há base de sustentação, como podemos ver nas imagens abaixo:
Imagem de Malunguinho Trunqueiro/Exú na Jurema Sagrada de Pernambuco. Foto de Alexandre L'Omi L'Odò.
Malunguinho Trunqueiro/Exú. Foto retirada do blog do Juremeiro Fábio de Cabedelo.
Ainda é um mistério o por quê de Malunguinho, um herói do povo negro e indígena, ser representado na Jurema como uma criança. Talvez isso seja o reflexo do próprio diminuitivo de seu nome, dando a entender que ele é pequeno... Existem outras representações dele como caboclo, mestre e Reis, mas não vem o caso apresentá-las aqui agora.
As representação imagética mais forte dele é a do Trunqueiro/Exú. Na jurema pernambucana vê-se em praticamente todas as mesas de jurema ou nos quartos dos tunqueiros, Ele sempre colocado em posição privilegiada. Seu culto é essencial, não se faz nada na Jurema sem antes ofertar cânticos e oferendas à ele. Seu culto tem similaridades grandes com o culto da divindade Exú do candomblé. Quase as mesmas funções míticas... Mas há diferenças que os separam completamente.
Após esta breve reflexão e pesquisa sobre o fato da "Malunguinha", concluo (desconfio) que os próprios vendedores do Mercado de São José introduziram este equívoco sem entenderem que há uma diferença cosmológica entre os erês Pretinhos da Sorte e o nosso Malunguinho. os Pretinhos da Sorte nunca foram cultuados na Jurema. Não se vê esta devoção nos terreiros daqui. Também, já que não há imagens catalogadas com o nome de Malunguinho no site das Imagens Bahia, sendo este o maior portal de vendas de imagens do Brasil, podemos entender que na umbanda não há culto à Malunguinho, e que os vendedores ou os artesãos daqui (PE) criaram a "Malunguinha" apenas para vender deliberadamente sem nenhuma responsabilidade com o contexto e percurso histórico de cada imagem. Simplesmente disseminaram no Mercado e os juremeiros cujo o conhecimento ainda é escasso sobre a história de sua religião, compram inocentemente acreditando que possa haver uma "Malunguinha" e que ela possa trazer sorte... Com os fatos apresentados neste texto, não é difícil perceber que há sim contradições juremológicas profundas. E exatamente por isso não podemos permitir que este culto se mantenha, afinal a existência da "Malunguinha" é uma afronta a toda tradição da jurema e a história do Catucá.
Se fossemos seguir a lógica que os mestres e mestras sempre terão um correspondente oposto ao seu gênero, vamos ter o feminino de Zé Pilintra - A Josefa Pilintra, ou Zefa Pilintra. Vamos ter o feminino do mestre Tertuliano, conhecido como Terto - A Tertuliana, ou Terta... Teremos o masculino da mestra Paulina - O Mestre Paulino... E assim sucessivamente. Não há lógica nisso... Aviso logo, para que não haja confusão na leitura deste texto. Devemos refletir muito sobre este tipo de problema que a cada dia aumenta em nosso meio...
Sabemos também que Malunguinho não é cultuado na Umbanda. Esta divindade pertence ao cosmo da Jurema e não há registros de seu culto em nenhum terreiro fora do Nordeste. Hoje, após o trabalho de divulgação da jurema sagrada e do Reis Malunguinho através da instituição Quilombo Cultural Malunguinho, já recebemos notícias de que alguns médiuns na umbanda já estão "recebendo" Malunguinho... Mas este é outro assunto...
Bom... Creio que este encontro com a "MALUNGUINHA da Sorte" possa nos dar panos pras mangas para refletir e discutir sobre como nosso povo da Jurema vem recriando sua prática religiosa e mitológica.
Sobô Nirê Mafá! Me ajude PAI Malunguinho a não ser preconceituoso com coisas que desafiam meu senso juremológico ortodoxo!
Vou ali fumar um cachimbo de angico para tentar pensar mais... Sobô Nirê Mafá!
Alexandre L'Omi L'Odò
Historiador e Mestrando em Ciências da Religião
Quilombo Cultural Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com