Juremeira Graça de Zé Gaguinho (Mãe Graça de Xangô). III Kipupa Malunguinho. Foto de Laila Santana.
Teologia
da Jurema Sagrada, existe alguma?
Por
Alexandre L’Omi L’Odò.
“Jurema, minha Jurema, Jurema, Jurema
minha, Jurema Preta, a senhora é a Rainha, ela é dona da Cidade, mas a chave é
minha”...
(Cântico sagrado da Jurema).
A
Jurema mostra o mundo inteiro a quem bebe: Vê-se o céu aberto, cujo fundo é
inteiramente vermelho; vê-se a morada luminosa de Deus; vê-se o campo de flores
onde habitam as almas dos índios mortos, separada das almas dos outros. Ao
fundo vê-se uma serra azul; vêem-se as aves do campo de flores: beija-flores,
sofrês e sabiás. À sua entrada estão os rochedos que se entrechocam esmagando
as almas dos maus quando estas querem passar entre eles. Vê-se como o sol passa
por debaixo da terra. Vê-se também a ave do trovão, que é desta altura (um
metro). Seus olhos são como os da arara, suas penas são vermelhas e no alto da
sua cabeça ela traz um enorme penacho. Abrindo e fechando este penacho, ela
produz o raio e, quando corre para lá e para cá, o trovão. (Nimuendadaju, 1986:
53).
Não existe ainda uma teologia escrita
e codificada sobre o culto da Jurema Sagrada, porém, posso tentar aqui dar um
ponta pé neste assunto que pretendo aprofundar futuramente nos meus estudos
acadêmicos que já iniciaram há algum tempo.
A teologia da Jurema é originária da
matriz indígena do nordeste brasileiro, em especial, etnicamente falando, dos
Tupi. É baseada na fé em um
Deus único, aparentemente o mesmo dos cristãos, mas devemos
incorporar o entendimento de que este “Deus” na verdade pode ser feminino como
a mãe Tamain dos Fulniô, ou pai Tupã, entre outros.
Na perspectiva do catolicismo popular
e do espiritismo kardecista a reencarnação é um elemento fundamental em suas
cosmologias, como também o é na crença religiosa dos Juremeiros, que acreditam
inclusive na possibilidade do espírito retornar como Mestre ou Mestra
(divindades/entidades que foram seres humanos e que viveram no mundo carnal, pertenceram
à Jurema como sacerdotes ou realizaram atos heróicos ou notórios e místicos em defesa
dos excluídos durante sua passagem na terra) para cumprir parte de sua “missão.
A crença em elementos, símbolos,
objetos, imagens, árvores sagradas, animais sagrados (a exemplo do besouro
mangangá), no Cachimbo ou Gaita e na Fumaça sagrada, compõe toda fé e
imaginário teológico da religião, que absorveu elementos do cristianismo
primeiramente, depois do imaginário da umbanda (a partir da década de 1970)
juntando-se ainda ao Kardecismo do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (Allan Kardec). Séries de
lendas urbanas também compõem o corpo de sua oralidade litúrgica, além de
contos místicos e fábulas sobre Mestres e Mestras que realizaram atos mágicos
em um tempo remoto. A Jurema em si, ainda, representa e materializa uma Deusa,
já que para a maioria dos povos indígenas do nordeste a divindade suprema da
existência seria mulher (Mãe Tamain). Ela é algo superior e incompreensível que
toma a forma de guia, de protetora, de Deusa, a Deusa próxima, ao alcance das
mãos e do espírito. Uma divindade amiga e inimiga, que podemos rogar quando
necessário, a exemplo da expressão: “Que a Jurema me abençoe me proteja e me
guarde”, neste caso ela é citada e rogada como Deusa, com o mesmo significado
do Deus cristão que pode proteger, abençoar e guardar.
No culto, o princípio fundamental é a
cura do corpo, mente e espírito, o bem estar do ser humano em todos os seus
aspectos, a resolução dos problemas gerais do cotidiano e a evolução espiritual
através da caridade e dos trabalhos de cura.
Bem e mal não são polarizados e nem
esboçam maniqueísmo. Estes conceitos são encarados com naturalidade dentro do
culto, que permite tanto usar a “ciência” para o “bem” quanto para o “mal”,
sabendo-se que há a lei do retorno também presente na religião kardecista. O
pecado é algo encarado como relativo, salientando que a defesa espiritual é um
ato digno e que deve ser feito sem temer os encargos que o “inimigo” sofrerá materialmente
ou espiritualmente. Podemos ainda ver características próximas com o Vodu do
Haiti, que é uma religião popular e muito difundida neste país, sendo
considerada uma religião de guerra, onde suas divindades/entidades incorporam a
defesa do povo contra o poder dominante, tendo papel muitas vezes definitivo e
fundamental nas decisões políticas do Estado. Na Jurema, vemos também este
papel, já que nas surdinas das noites, os políticos vão aos terreiros de Jurema
decidir seus destinos nos seus meios de relações de poder.
“A Pajelança Jurema Nativa possui um conhecimento e uma Tradição Milenar, (segundo o nativo Taki Cacique Pajé da Tribo Karirí Xocó apud Alberto Junior, 2007).
Os ancestrais divinizados na Jurema,
tem o mesmo valor dos Babá Ègún (ancestrais ilustres divinizados que quando em
vida eram iniciados ao culto de um Orixá) para os povos Yorùbás. Eles são
cultuados e respeitados de forma específica, mas semioticamente semelhante a
esta tradição, onde a ética, o respeito e a organização social são mantidos por
estas personalidades divinizadas, que voltam para reorganizar ou manter o
controle das tradições.
Maria do Acaes, a grande Juremeira
histórica, nos remete ao imaginário da Jurema paraibana, que teve tantos
valores agregados a ela e à sua mesa de Jurema, que curou e revolucionou a vida
de muitos e muitas em seu tempo. Hoje, é saudada em todas as casas com o vigor
de ancestral ilustre que fez da Jurema uma forte tradição, que emanou conceito
litúrgico organizado através de sua experiência própria para os dias atuais. Isso
se vê claramente nas casas mais tradicionais que preservam inclusive os
elementos de mesa, igualmente a antiga tradição.
“A cosmovisão religiosa da Jurema,
centraliza-se no reino da Jurema,
(...)
que, em Alhandra, é também denominado de Encantos. Esse reino, de acordo com os
juremeiros da região, seria composto de sete cidades, sete ciências: Vajucá,
Junça, Catucá, Manacá, Angico, Aroeira e Jurema. Como mencionado acima, Andrade
foi o primeiro a relatar a existência de um Reino da Jurema. Este, segundo o
autor, se dividiria em outros onze reinos: Juremal, Vajucá, Ondina, Rio Verde,
Fundo do Mar, Cova de Salomão, Cidade Santa, Florestas Virgens, Vento, Sol e
Urubá (ANDRADE, 1983). (Salles, 2010; p. 82).
“Cascudo, em Meleagro, menciona a existência de um mundo dos “encantados”, que
seria dividido, segundo alguns, em sete: Vajucá, Urubá, Juremal, Josafá, Tigre,
Canindé e o Fundo do Mar, e cinco, segundo outros, que seriam os quatro
primeiros, mais Tanema, ou o Reino de Iracema. Esse “mundo do além”, segundo
ele, seria dividido em Reinados ou Reinos, cuja unidade seria a aldeia. Cada
aldeia, por sua vez, teria três mestres. Assim, 12 aldeias formariam um reino,
composto de 36 mestres. Nesse reino, haveria cidades, serras, florestas e rios”
(Cascudo, 1978, apud Salles, 2010; p.
82). Mas esta complexidade pertence a uma forma de pensar o mundo através da
experiência própria transcendental da viagem à Jurema, atividade muito comum
aos Juremeiros antigos e índios que ao ingerir o vinho sagrado feito com as
raízes da Jurema Preta (Mimosa hostilis),
elevavam-se a estes mundos que eram revelados em etapas, e onde se buscava a
tão citada ciência da Jurema.
A cura na Jurema pode-se compreender dentro
de uma lógica holista. Os diversos processos de curandeirismo que envolvem um vasto
conhecimento de ervas e magias dentro da medicina indígena/dos juremeiros
contidos na ciência da Jurema, abrangem o corpo físico (a “matéria”), a mente e
o espírito.
As entidades que compões a jurema são
os Caboclos e índios (os guardiões da Jurema, junto com Malunguinho), Mestres
Juremeiros e Mestras Juremeiras, Trunqueiros/Exús, cangaceiros, crianças,
marinheiros, ciganos, freis, encantados, espíritos de baixa evolução, etc.
Assim como no Kardecismo, o juremeiro pode receber entidades diversas,
obsessores e outros espíritos de linhagens inesperadas, como por exemplo, os
espíritos hinduístas entre outros.
A composição e representação imagética
nesta religião se compõem de imagens na estatuas e estatuetas, na maioria de
gesso, com representações ainda rústicas de suas divindades/entidades. Não se
sabe bem ao certo como os produtores de imagens de gesso tiveram conhecimento
para retratar em suas esculturas imagens que poderiam equivaler a estas
divindades/entidades, mas isso não é importante entre os religiosos, pois a
representação não é fundamental no culto, podendo ser completamente abolida por
uma “princesa” ou “príncipe” (taças e copos, com os fundamentos da Jurema).
A iniciação no culto da Jurema assume
diversas formas e metodologias não seguindo um padrão unificado e
liturgicamente igual nos terreiros. O Juremeiro ou juremeira pode nascer com a
ciência e não precisar ser juremado (iniciar-se no culto), da mesma forma como
uma divindade/entidade pode solicitar esta iniciação, que varia de caso a caso.
O ritual chamado de Tombo da Jurema ou Juremação é um dos mais conhecidos entre
os religiosos, mas nestes casos, é o mestre ou mestra, caboclo ou trunqueiro
que recebe o ritual, utilizando-se do corpo do juremeiro.
O termo catimbó, muito utilizado
dentro do culto da Jurema, significa “prática espírita afro-indígena, de
finalidade terapêutica, originada da fusão de elementos da pajelança e de
cultos bantos. É conduzida por um “mestre” e resume-se, basicamente, em sessões
de passes, defumações e banhos lustrais, com cânticos propiciatórios” (Lopes,
2004). A origem do termo catimbó
é controversa, embora a maior parte dos pesquisadores afirme que deriva da língua tupi
antiga, onde caa significa floresta
e timbó refere-se a uma espécie de torpor que se
assemelha à morte. Desta forma, catimbó seria a floresta que conduz ao
torpor, ou a morte, numa clara referência ao estado de transe ocasionado
pela ingestão do vinho da jurema. Outras teorias, porém,
relacionam o vocábulo com a expressão cat, fogo, e imbó, árvore,
neste mesmo idioma.
Assim, fogo na árvore ou árvore que queima relataria a sensação
de queimor momentâneo que a ingestão da bebida da Jurema ocasiona. Em diversos
estados do nordeste brasileiro, onde os rituais de
catimbó são freqüentemente associados à prática de magia negra,
a palavra ganha um significado pejorativo, podendo englobar qualquer atividade
mágica realizada no intuito de prejudicar outrem. Ainda podemos entender que
este termo está ligado a um significado de torpe, que coloca a pessoa em
condição de inferioridade pela prática mística, julgo este sempre feito por
designação leiga. Os termos juremeiro e juremeira, designando o sacerdote ou
sacerdotisa que preside a mesa ou terreiro de Jurema é atualmente utilizado,
sendo também recente o entendimento de que os termos catimbozeiro ou
catimbozeira devem ser abolidos para uma melhor compreensão dos termos aqui expressos.
*Texto produzido para compor o site da UNICAP.
Alexandre
L’Omi L’Odò
Quilombo Cultural Malunguinho
alexandrelomilodo@gmail.com
Um comentário:
Belíssimo trabalho !!!
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